António Rego Chaves
Uma das mais curiosas e sintomáticas expressões do discurso político hoje dominante, que é amarxista (ou seja, alheio à filosofia marxista, tal como também é amoral, quer dizer, alheio a qualquer referência moral) tem sido o uso do substantivo «mais-valia». Fala-se a torto e direito de «mais-valia» no sentido de «vantagem» ou «trunfo». Assim, o empresário está pronto a conceder que o curso do «seu» jovem estafeta que acaba de se formar em engenharia informática representa uma «mais-valia» para a empresa; e esse recém-formado engenheiro informático, se pretender obter um aumento de vencimento, argumentará que o seu curso representa uma «mais-valia» para a empresa. Isto é, a luta de classes diluiu-se numa monocórdica tagarelice politicamente correcta, assimilada tanto por patrões como por assalariados.
Pelo contrário, para um estalinista «puro e duro» dos «saudosos tempos» da Guerra Fria, dominados pelo confronto ideológico entre os sistemas capitalista e comunista, a mais-valia só podia assumir um significado: o que lhe tinha sido atribuído por Marx, ou seja, a diferença entre o valor dos bens produzidos pelo proletário e os salários que lhe eram pagos pelo patrão. Ela estaria na origem de todos os lucros e ao contínuo processo de «extracção» da mais-valia chamava-lhe «exploração» dos trabalhadores.
O marxismo parece, pois, «ultrapassado». «Foi uma coisa do século XIX» – papagueiam algumas figuras de destaque, dispensando-se de o conhecer senão de lombada ou de outiva, mesmo quando não se importam de soletrar os nomes de Platão, Descartes ou Hegel e concedem que Marx talvez tenha sido, como estes seus três antiquíssimos antepassados, um filósofo. Ora a verdade é que, desde meados do século XIX, o pensamento de Marx não se limitou a interpretar o mundo – transformou-o. E isto passou-se até quando distorcido – o que muito sucedeu, fosse na URSS, na China ou em Cuba.
Professor de filosofia política no University College de Londres, Jonathan Wolff não é, decerto, um devotado panegirista do marxismo. Mas cuidou de explicar aos alunos por que motivo vale a pena, ainda hoje, ler Marx. Não para que se transformassem em autoridades na matéria, mas para que soubessem do que falavam quando falavam de capitalismo. Porque – e talvez seja essa a sua lição fundamental – poucos perceberam como o autor de «O Capital» o que é capitalismo. Por isso considera que o mais vivo no pensamento de Marx – que à sua maneira, como Hegel, anunciou «o fim da história» – é a sua lúcida análise do capitalismo e não as previsões segundo as quais este se eclipsaria para dar lugar, e para sempre, ao comunismo.
Afirma o ensaísta: «O falhanço do comunismo não quer dizer que tudo esteja bem no capitalismo ocidental, liberal e democrático. E é Marx, acima de tudo, quem nos fornece as ferramentas mais adequadas para criticar a sociedade existente.» (…) «Marx, enquanto pensador criativo, era extremamente optimista, equivocava-se algumas vezes nos argumentos e pressupostos, era muitas vezes desesperantemente vago acerca dos pormenores e, por conseguinte, tem pouco a dizer-nos agora sobre o modo de organizar a sociedade. Mas as suas críticas à sociedade do fim do século XIX têm uma enorme relevância mesmo no início do século XXI.»
A verdade é que, com frequência, Marx se limitou a denunciar, de forma muitas vezes apelidada de «científica» – entenda-se, «sistemática» – a realidade que muitos dos seus coetâneos mais informados bem conheciam: que os tentáculos das grandes empresas quase tudo controlam na sociedade capitalista, seja financiando partidos políticos, seja influenciando a feitura das leis e o sistema judicial, seja estabelecendo prioridades eleitorais. Por outras palavras, o direito e a política estão ao serviço do capital financeiro e industrial. Vale dizer que a superstrutura serve os interesses económicos da classe dominante, a burguesia, consolidando a exploração dos que apenas possuem a sua força de trabalho pelos proprietários dos meios de produção.
Marx explicou como o feudalismo foi substituído pelo capitalismo e previa que este seria substituído pelo comunismo: «A descoberta do ouro e da prata na América, a extirpação, escravização e emparedamento nas minas da população indígena desse continente, os princípios da conquista e pilhagem da Índia e a conversão de África numa reserva para a caça comercial de negros, são tudo coisas que caracterizam o alvorecer da era da produção capitalista.» (…) «O comunismo não é para nós um estado de coisas a ser estabelecido, nem um ideal ao qual a realidade terá de se ajustar. Chamamos comunismo ao movimento real que abole o presente estado de coisas.» Assim como o feudalismo, ao travar o desenvolvimento das forças produtivas, fora substituído pelo capitalismo, este, ao travar um novo desenvolvimento das forças produtivas, daria lugar ao comunismo.
«O Capital» não provou nem podia provar que o capitalismo iria acabar e seria substituído pelo comunismo – assim como ninguém pode provar que o capitalismo não será substituído pelo comunismo. Conclui o autor: «O capitalismo não existiu desde sempre: desenvolveu-se a partir de outras condições económicas. Talvez também não dure para sempre. Devemos, pelo menos, manter-nos abertos a esta possibilidade e agradecer a Marx ter-nos chamado a atenção para ela com tanta firmeza.» (…) «Marx continua a ser o crítico mais profundo e perspicaz do capitalismo, mesmo sob a sua forma actual. Podemos não confiar nas soluções para os problemas que ele identifica, mas isso não faz com que os problemas desapareçam.» De facto, o mínimo que se pode dizer é que nem o antimarxismo nem o amarxismo parecem interessados em fazer outra coisa que não seja gerir o capitalismo tal como ele, desde a Revolução Industrial, se lhes tem apresentado, primeiro na Europa e depois nos outros continentes: incapaz de combater eficazmente a fome, o desemprego e monstruosas desigualdades sociais.
Jonathan Wolff, «Porquê ler Marx hoje?», Edições Cotovia, 2003, 153 páginas