«Um gigante»
António Rego Chaves
Dizia o monárquico Carlos Malheiro Dias, referindo-se a Afonso Costa: «entre os pigmeus incontáveis da República, ele é de facto um gigante, não só pelo motivo suficiente de que em terra de cegos quem tem um olho é rei, mas porque, sem contestação, o famoso político reúne predicados que em grandíssima parte legitimam as esperanças candentes dos seus entusiásticos partidários». Corria o ano de 1912, mas a obra legislativa realizada até então pelo homem que foi ministro (1910-1911, 1916-1917) e chefe de governo da jovem República Portuguesa (1913-1914, 1915-1916, 1917) era já imponente e infundia respeito mesmo a adversários e inimigos.
Afonso Costa (1871-1937), «qual outro Mouzinho da Silveira a oito décadas de distância, quis num ápice alterar costumes de séculos, o que comprometeu o destino da República na obra de reconciliação nacional que esta se propunha levar a cabo» – escreve Veríssimo Serrão. E acrescenta: «Vale a pena enumerar as medidas legislativas a que o ministro da Justiça ligou o nome no último trimestre de 1910: a 8 de Outubro, o decreto-lei da expulsão dos Jesuítas e de encerramento das congregações religiosas; a 18 de Outubro, o decreto-lei que abolia o juramento religioso nos actos civis; três dias depois, o decreto-lei que suspendia do múnus D. Sebastião de Vasconcelos, bispo de Beja; a 28 de Outubro, o decreto-lei mais conhecido por Lei da Imprensa; a 3 de Novembro, o diploma que estabelecia o divórcio; a 12 de Novembro, a lei sobre o inquilinato; e, finalmente, no dia 25 de Dezembro, o decreto-lei sobre o casamento e a protecção aos filhos.»
O problema mais grave que a nova legislação provocou foi, como seria de esperar, o da Igreja Católica, pois deixava de ser permitida a constituição no País de congregações religiosas para fins de instrução ou beneficência ou para «a propaganda da fé e civilização no ultramar». Restabelecia-se assim a legislação pombalina de 1759 e 1767, bem como um decreto de 1834. Em 1911, a lei de separação da Igreja e do Estado e, no ano seguinte, o código do registo civil, em nada contribuiriam para serenar os ânimos.
Sintetizou António Viana Martins, em obra já recenseada neste espaço: «Valores até então indiscutíveis foram assim arredados a um canto: não contente por atentar a santas instituições como a indissolubilidade do casamento e a desigualdade de direitos entre filhos legítimos e ilegítimos, a república subordinava a si o poder eclesiástico, atrevia-se mesmo a restabelecer, à maneira do antigo beneplácito régio, a censura do governo sobre os textos que a Igreja queria tornar públicos.» Se a estas iniciativas legislativas acrescentarmos as reformas das finanças, da instrução pública, uma nova organização do crédito agrícola e a criação do ensino técnico, poucos não reconhecerão alguns elevados méritos à República de Afonso Costa, cujo papel será também decisivo na contenção de despesas, obtendo por duas vezes contas públicas excedentárias antes da Grande Guerra.
Filipe Ribeiro de Meneses, neste seu «Afonso Costa», não parece muito interessado nestes «pormenores» da governação republicana, detendo-se por vezes em aspectos secundários para a biografia política de Afonso Costa ou concentrando-se no papel por ele desempenhado, quer na intervenção portuguesa (de que foi intransigente apologista) na Primeira Guerra Mundial, quer na conferência que conduziria ao Tratado de Versalhes, quer na questão das reparações exigíveis à Alemanha em consequência dos prejuízos suportados por Portugal devido ao conflito.
Reconhecendo que a Grã-Bretanha e a Alemanha tinham decidido em 1913 dividir entre si as colónias portuguesas, o autor não disfarça, no entanto, a sua benevolência em relação à germanofilia dos ditadores Pimenta de Castro e Sidónio Pais. E, sem salientar o intensíssimo esforço diplomático despendido pelo regime republicano para impor às grandes potências aliadas a intervenção num conflito de cujo desenvolvimento dependeria a integridade do território colonial português e o direito a indemnizações, uma vez derrotado o inimigo comum, prefere apresentar-nos um Afonso Costa mesquinho, destituído de grandeza humana e política, ignorante de tudo o que seria necessário para manter um país em guerra, sempre ridículo e antecipado vencido no diálogo desigual com a Grã-Bretanha e a França.
A objectividade «científica» do autor fica bem expressa nestas frases finais: «Na década cada vez mais nacionalista de 1930, e mesmo depois, (…) poucos lamentavam o desaparecimento da velha ordem. Salazar manteve Portugal fora da Segunda Guerra Mundial e a maioria dos portugueses ficou-lhe agradecida. O Estado Novo só começou a ter dificuldades quando uma geração que já não se recordava da Primeira República se tornou politicamente consciente e descontente com o regime cada vez mais arbitrário e reaccionário de Salazar. A decisão de Salazar de louvar Afonso Costa num discurso de 1966 de comemoração do quadragésimo aniversário da ‘Revolução Nacional’ como um dos ‘grandes nomes’ que o tinham antecedido na pasta das Finanças mostrou até que ponto se tinha generalizado a ignorância sobre a Primeira República e a sua figura mais importante, quatro décadas após o seu fim.» (…) «Alguns historiadores tentaram apresentar a República como um antecessor meritório e Afonso Costa como um pai da Democracia portuguesa; desses, A. H. de Oliveira Marques foi o mais importante. Porém, foi uma tentativa vã, que nunca se tornou popular entre outros historiadores ou entre o público em geral.»
Ribeiro de Meneses quer sem dúvida guiar-se por padrões da historiografia anglo-saxónica: mas fica muito aquém deles. Ignorar a relevância que a referência da I República teve para a oposição democrática, até 1974, é apagar uma parcela nobilíssima da nossa história do século XX, sem a qual o 25 de Abril, que se tornou numa vitória de todas as gerações adultas da época, não teria sido festejado nas ruas do País por milhões de portugueses.
Filipe Ribeiro de Meneses, «Afonso Costa», Texto, 2010, 207 páginas