«Fascismo nunca mais»?
António Rego Chaves
Gritávamos, se gritávamos, naqueles benditos meses do PREC: «Fascismo nunca mais!». Foram só dezanove meses, entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975? É certo, mas vivemos uma eternidade. Gritávamos nas ruas de Lisboa, gritávamos pelo Norte, pelo Sul, pelo Centro, gritávamos como se existisse um país nosso, maiúsculo, «o País». Mas que falta de maturidade, que inconsciência, que delírio o nosso! Que estupidez a nossa!
Não que o fascismo fosse voltar. Não que o fascismo tenha voltado. Não que o fascismo vá voltar. A questão é que o fascismo nunca de cá saíra. Essa é a pura verdade: o fascismo invadiu-nos e, logo ao chegar, instalou-se. Instalou-se em gestos diários, em inércias consentidas, em reflexos incontrolados. Instalou-se porque somos distraídos, ignorantes, obedientes.
Achamos o livro, lemos o título erudito – «O Eterno Retorno do Fascismo» –, indagamos: nele não coube o nome «Portugal». É obra de um humanista que nos merece todo o respeito, Rob Riemen, mas não nos fala dos homens e das mulheres que por aqui viveram e vivem e viverão à míngua de justiça. Na Holanda não se sabe o que isto foi, o que isto é, o que isto vai ser. Não sabem e se calhar nem querem saber. Nunca se dignam falar no Tarrafal.
Seja que nos invoquem os mais sábios – Nietzsche, Thomas Mann, Albert Camus. Seja. Mas Nietzsche era um solitário nada solidário. Camus foi as duas coisas, solitário e solidário, mas acabou quase ostracizado. Quanto a Thomas Mann – bom, esse, na Primeira Guerra Mundial, pôs alguns dos ovos que o nazismo iria chocar. Quem duvide que leia as «Considerações de um Apolítico». Esgares de ódio germânico aos latinos. «Deustschland über alles», mil vezes repetido. O nacionalismo não conhecerá limites?
Sem esquecer que o fascismo é um fenómeno eminentemente europeu, comecemos por Nietzsche – e talvez não seja necessário ir além do poeta-filósofo de «Assim Falava Zaratustra», porque ele disse o que de mais decisivo havia a dizer acerca das condições da possibilidade de gestação, nascimento e sedimentação dos fascismos. Ao falar do «niilismo europeu», pôs o dedo na ferida – ensinou-nos que é de temer aonde nos conduzirá a «desvalorização de todos os valores existentes até agora». Repudiada a moral do cristianismo, teremos de nos cingir a uma existência sem sentido nem finalidade, estaremos condenados a um «eterno retorno do mesmo»? Nesse caso, tudo seria vão – «tudo é vanidade», como avisa o Eclesiastes.
Albert Camus «agarrou» no Nietzsche d’ «A Vontade de Poder» – um texto muito duvidoso, diga-se de passagem, porque velhacamente manipulado por Elisabeth Förster-Nietzsche, a sua irmãzinha veneradora de Mussolini e Hitler – e interpretou-o conforme podia na época, quando a obra não tinha sido por completo desautorizada. Surpreendentemente, o resultado não foi desastroso, pois chegou a uma conclusão que ainda hoje se pode manter, admitindo que «o socialismo não passa de um cristianismo degenerado»: como sintetizou Maurice Weyembergh, a realidade repete-se sempre, não haverá sociedade reconciliada ou sociedade sem classes, mas uma luta sempre recomeçada entre as vontades de poder, os senhores e os escravos, os fortes e os fracos. Se bem interpretamos: tudo parece – e é mesmo – vão.
E, no entanto… E, no entanto, Camus lutou contra o nazismo. Lutou, não porque julgasse que o resultado da sua luta seria uma comunidade perfeita, mas porque queria que esse desfecho fosse uma sociedade menos abjecta. Por isso arriscou a vida, conhecendo bem o terreno que pisava, sabendo bem para onde ia, sem ilusões. A maioria dos homens precisa de saber que se bate por um mundo ideal; a outros basta-lhes ter a noção de que se batem contra um mundo intolerável. Foi o caso do autor d’ «O Mito de Sísifo».
Prevê Rob Riemen: «O fascismo na América será religioso e contra os Negros, ao passo que na Europa Ocidental será laico e contra o islão, na Europa de Leste, católico ou ortodoxo e anti-semita. A técnica usada é a mesma em toda a parte: um líder carismático, populista, para mobilizar as massas; o seu próprio grupo é sempre vítima (das crises, da elite ou dos estrangeiros); e o ressentimento orienta-se todo para um ‘inimigo’.»
Voltando a esta terra, que queremos nossa. Por cá também há quem seja racista, antijudaico e anti-islâmico e quem se diga vítima de crise e pesada herança, mas não se descortina um líder carismático. Gritámos «Fascismo nunca mais!», mas o fascismo nunca se foi embora. Não víamos os bacilos da peste e os ratos que os tinham trazido, embora eles nos roessem as entranhas: a incultura das massas, o ódio e a inveja, a ganância de competir e vencer para aumentar lucros, o desaparecimento de valores intelectuais e espirituais, o culto, muitas vezes arrogante, da superficialidade, as ideias feitas, os slogans, a propaganda, os «profissionais» do sacrifício inevitável.
E fomo-nos habituando à tal «pior forma de governo com excepção de todas as outras». Fomo-nos habituando às mentiras dos políticos, ao seu desrespeito pela palavra dada, às suas tentativas de conquistar, manter ou ampliar um poder decidido a não dignificar o trabalho e apostado em gerir os interesses dos mais abastados. Fomo-nos habituando à indiferença, ao autismo, à cobardia de intelectuais incapazes de agir como concidadãos dos desamparados, dos humilhados, dos ofendidos. Fomo-nos habituando a viver num país que sentimos como não sendo o nosso, não por estarmos a viver comandados pelo BCE, pela Alemanha ou pelo FMI (já estivéramos sob o jugo da Espanha, da França, da Inglaterra), mas devido às pragas que nos assolaram: a do fascismo que não é bem um fascismo, a da democracia que não é bem uma democracia, a do conformismo, a do egoísmo, a do «salve-se quem puder». Feitas as contas, talvez o fascismo seja sobretudo a cumplicidade com uma metódica e infame recusa de solidariedade que se entranhou mais e mais junto de todos nós, entre todos nós, em todos nós...
Rob Riemen, «O Eterno Retorno do Fascismo», Bizâncio, 2012, 78 páginas