Uma homenagem a Baptista-Bastos
António Rego Chaves
O francês Julien Benda (1857-1956) escreveu mais de 40 obras, mas apenas uma, «La Trahison des clercs» (1927), transpôs com êxito as fronteiras do Hexágono. Neste texto quis o autor envolver tanto «clérigos eclesiásticos» como «clérigos leigos» e «clérigos laicos» – daí a distorção do seu pensamento quando traduzido por «A Traição dos Intelectuais», expressão que não abrange com rigor todos estes universos. Seja como for – e apesar de muito «datado» –, o polémico ensaio merece sem dúvida uma atenta (re)leitura, mais de oitenta anos depois da sua primeira edição.
Intransigentemente racionalista e anti-romântico, mas não impermeável à utopia política, o magistério de Julien Benda, segundo Fernando Savater, já foi abandonado em toda a Europa. No entanto, lembra o filósofo espanhol, Sartre, uma vez desaparecido o famoso polemista, apressou-se a declarar que a sua vigilância nos iria «fazer falta» – e isso não obstante aquele ser um seu adversário no plano das ideias, já que, em 1947, num panfleto denominado «Tradition de l’existentialisme», censurara o autor de «O Ser e o Nada» sobretudo por ter renegado a «mensagem» cartesiana.
Sintetizava na introdução, em 1974, André Lwoff (Nobel da Medicina de 1965, juntamente com François Jacob e Jacques Monod): «A traição dos clérigos é a recusa dos valores universais e a sujeição do espiritual ao temporal.» Seriam então os «clérigos», na opinião de Benda, forçados a escolher entre contemplação e acção? O autor fora, de facto, bem explícito: «O clérigo deve dar a sua adesão ao ideal de esquerda, à metafísica de esquerda, mas não necessariamente à política de esquerda. A função do intelectual em matéria política é pregar o respeito pela justiça e pela verdade.» (…) «O clérigo não é forte senão se declara aos homens que o seu reino não é deste mundo…» (…) «O clérigo é crucificado mas a sua palavra obceca a memória dos homens.» Serão necessários exemplos? Sócrates e Jesus Cristo.
René Étiemble, no prefácio que assinou trinta anos depois da edição original desta obra de Julien Benda, enumerava algumas «capelas» que o autor tanto parece ter perturbado: a bergsonista, a maurrasiana, a surrealista e a existencialista, interrogando: «Com uma só obra, porquê ter conquistado alguns milhares de inimigos: todos os clérigos que tinham traído, ou seja, quase todos os clérigos?» Passados que eram os tempos dos «oficiantes da justiça abstracta», os cidadãos do mundo Montaigne e Montesquieu, Voltaire e Zola, os tempos em que Montaigne se opunha aos processos por bruxaria, à chacina das Caraíbas, à pilhagem da Índias; os tempos em que Montesquieu condenava a escravatura; os tempos em que Voltaire e Zola intervinham nos casos Calas e Dreyfus, todos eles, honra lhes seja feita, sobrepondo-se ao vergonhoso silêncio cúmplice dos «clérigos eclesiásticos», onde residiria o poder espiritual capaz de condenar as iniquidades do poder temporal, não em nome de uma qualquer religião, nação, raça ou classe social, mas com fundamento na justiça, na verdade, na razão? Escreve Étiemble: «Clérigo é apenas aquele que escolhe morrer pelos valores universais. Clérigo é apenas aquele que recusa o adágio romano: salus populi suprema lex est; yanquee: right or wrong, my country; ou barresiano: mesmo que a pátria esteja errada, é preciso dar-lhe razão.» Acrescenta: «Maurras e os bispos, Barrès e Henri Bordeaux, todos estão prontos a mentir pela França. Como se mentir por ela não fosse agir contra ela!» E adianta que Julien Benda pôs em 1927 o dedo na ferida ao culpar pela «traição dos clérigos» o romantismo, o hegelianismo, a recusa de uma natureza humana, de uma razão universal e consubstancial à espécie humana; a exaltação do singular, do patético, do existencial; o triunfo dos valores germânicos em confronto com o helenismo. «Sem falar do estatuto financeiro dos clérigos: para a sua subsistência e de suas famílias, eles dependiam, seja da burguesia, que fazia deles servos voluntários, seja de um partido único, que os transformava em forçados.»
Sendo o «clérigo» que não trai alguém que não tem como fim imediato obter qualquer resultado prático e se considera estranho ao «realismo» próprio das multidões, um ser «cujo reino não é deste mundo», torna-se quase inevitável que se transforme em solitário campeão do eterno e da verdade universal. No entanto, ele não se vergará às paixões ditas «patrióticas», ou estatais, ou religiosas, ou de classe: cumpre-lhe, sim, tal como Sócrates, honrar a sua ideia de justiça, ser digno dela: «Assim nos surge a boa ordem das coisas: o clérigo, fiel à sua essência, denuncia o realismo dos Estados; estes, não menos fiéis à sua essência, obrigam-no a beber a cicuta…»
No ano de 1927, instaladas ditaduras e democracias para todos os gostos por esse mundo fora, os «clérigos» pareciam ter abandonado os valores desinteressados em França, na Alemanha ou em Itália (os países mais visados por Julien Benda) para abraçar valores práticos, trocando o espiritual pelo temporal. O autor não poupa o «patrioteirismo» de Péguy, de Barrès, de Maurras e de outros «doutores» da «Action Française», como não poupa Fichte, Hegel e Nietzsche (melhor, o uso abusivo das suas obras feito por alguns «discípulos»). E é sobretudo à Alemanha que atribui a responsabilidade pelos cultos da alma nacional, da raça, da força, da guerra, das filosofias nacionalistas da história. Tudo, a seu ver, «doenças» bem românticas, devidas à sobrevalorização da sensibilidade em detrimento da razão grega e clássica.
Estará este livro desactualizado? Seja qual for a resposta, não se pode falar da intervenção política dos «clérigos» franceses no primeiro quartel do século XX ou durante o regime de Vichy, a Guerra da Argélia ou Maio de 68, sem meditar nas «traições» clericais. Quanto a Portugal, as manifestações de cidadania dos «clérigos» de esquerda não passam, hoje, de raríssimos – e temerários – quixotismos dos que se recusam a aceitar, tal como um Baptista-Bastos, «a cobardia do silêncio cúmplice»…
Julien Benda, «La Trahison des clercs», Grasset, 1995, 259 páginas