Retrato de um dreifusista (Anatole France)

António Rego Chaves

A tetralogia romanceada que Anatole France (1844-1924) intitulou «L’Histoire contemporaine» termina com «Monsieur Bergeret à Paris», volume cujo principal interesse residirá, hoje, na oportunidade de nos fazer penetrar na sociedade parisiense de 1900, abalada pelo «caso Dreyfus». Como notou um crítico, «o autor volta-se deliberadamente para a sátira política.» (…) «Quer apenas retratar o clima político que reinava em Paris durante os primeiros meses do ministério Waldeck-Rousseau: todo o seu talento de analista lhe serve para descrever a vida dos grupos políticos de direita, os meios monárquicos que não pensam senão em aproveitar-se da desordem e dos terríveis contragolpes do ‘Affaire’ [Dreyfus] para derrubar a República.» Neste contexto, a personagem principal, o erudito filólogo e professor da Sorbonne Monsieur Bergeret, «representante por excelência do intelectualismo francês e europeu do fim do século XIX», humanista céptico e irónico, herdeiro do racionalismo das Luzes, pertinaz praticante da dúvida em relação ao discurso dos seus coetâneos, mas sedento de liberdade e de justiça social, embora pouco vocacionado para a acção, confunde-se, não poucas vezes, com o cidadão Anatole France.

Escreveu o historiador Jacques Bainville, cujas ligações à «Action Française», de Charles Maurras, eram notórias: «O caso Dreyfus, pelo qual os radicais, desta vez aliados aos socialistas, retomaram o governo, e pelo qual Clemenceau reentrou na vida pública, foi o equivalente a uma verdadeira revolução. Em torno da questão deste oficial judeu, condenado por traição em 1894 por um conselho de guerra e cuja inocência foi apaixonadamente afirmada em 1897, formaram-se dois campos. O seu próprio nome transformou-se num símbolo. A França dividiu-se entre dreifusistas e antidreifusistas. Esta luta de doutrinas, de sentimentos, de tendências, em que se confrontavam o espírito conservador e o espírito revolucionário, repetia, sob uma forma reduzida e atenuada, as grandes crises do século XIV, das guerras de Religião, da Fronda, de 1789, em que se tinha visto, como no caso Dreyfus, os ‘intelectuais’ tomar partido, a filosofia e a literatura na batalha. Durante três anos, a revisão do processo Dreyfus governou toda a política e acabou por determinar o seu curso. As polémicas tinham fixado as posições. Os partidários da ‘coisa julgada’ (sic) tinham-se colocado à direita e os partidários da inocência à esquerda.»

Mas o assunto não era assim tão simples. O que a direita pseudocatólica queria repor verdadeiramente na ordem do dia era a monarquia autoritária, o militarismo, a xenofobia, ao mesmo tempo que virava os seus decrépitos arcabuzes contra os judeus, os mações, os protestantes, os «metecos». Agnóstico, mas seguidor da Igreja Romana por cálculo político, dado que considerava o catolicismo como mero instrumento da unidade nacional, o xenófobo Charles Maurras, decerto um dos mais odientos antidreifusistas, declararia: «A França perde a sua nacionalidade. Judeus, americanos, austríacos, alemães, suíços e belgas governam-na. Ela é a presa da finança cosmopolita, da literatura cosmopolita, do pensamento cosmopolita.»

Logo após publicação do célebre «J’Accuse…! – Lettre a M. Félix Faure, Président de la République», de Émile Zola, ocupando toda a primeira página do jornal «L’Aurore» de 13 de Janeiro de 1898, Anatole France é um dos signatários do manifesto dos intelectuais dreifusistas. Centenas de nomes acompanham o do autor de «Monsieur Bergeret à Paris»: entre eles, Claude Monet, Jules Renard, Émile Durkheim, Octave Mirbeau, Charles Andler, Daniel Halévy, Marcel Proust. Ripostam, do outro lado da barricada, François Coppée, Jules Lemaître, Maurice Barrès, Paul Bourget, Jules Verne, Léon Daudet, Pierre Louÿs e, claro, Charles Maurras. Os dados estão lançados, eis chegada a «guerra civil» entre os intelectuais.

Sublinha Michel Winock: «A Academia Francesa optara em bloco contra Dreyfus. Os seus membros que tinham dúvidas quanto ao julgamento do Conselho de Guerra de 1894 conservavam-nas no seu foro íntimo. Com excepção de um: Anatole France. Em Janeiro de 1898, lera-se a sua assinatura mesmo a seguir à de Émile Zola.» O nosso escritor, até então admirador de Maurras e homem da dúvida socrática, não se furtou, pois – para espanto do socialista Léon Blum – a associar o seu nome ao de Zola.

Só que Anatole France já então se revelara um severo crítico da existência de uma justiça militar autónoma, do chamado «anti-semitismo», do clericalismo – e ainda tinha a esperança de conciliar, como depois o seu M. Bergeret, o espírito com a opinião pública, a inteligência com o «rebanho». «O céptico voltairiano transforma-se num intelectual de esquerda, que, daí em diante, crê nas virtudes da ciência e do socialismo» – sintetiza Michel Winock. Na verdade, Anatole France passa a perfilar-se como dreifusista militante – seja participando em comícios, seja recusando usar a Legião de Honra, seja negando-se a comparecer na Academia Francesa, seja escrevendo nos jornais em defesa do injustiçado capitão, seja condenando o barbarismo dito «anti-semita», seja publicando «M. Bergeret à Paris», onde nos lança esta aterradora advertência: «É a ciência, e não povo, que detém a soberania. Uma estupidez repetida por trinta e seis milhões de bocas não deixa de ser uma estupidez. As maiorias manifestaram a maior parte das vezes uma aptidão superior para a servidão. Entre os fracos, a fraqueza multiplica-se com o número dos indivíduos. As multidões são sempre inertes. Não têm um pouco de força senão quando rebentam de fome.»

Apenas em 1906 Dreyfus seria reabilitado, reintegrado no Exército e receberia a Legião de Honra. Dois anos depois, a urna de Zola, falecido em 1902, é solenemente depositada no Panthéon – não sem que Dreyfus seja alvejado a tiro, durante a cerimónia, por um jornalista da simpatia de Maurice Barrès. Mas os dreifusistas, pelo menos na sua qualidade de defensores da não-discriminação dos judeus, já não poderiam ser vencidos senão muito mais tarde, quando as tropas de Hitler ocupassem a França…

Anatole France, «M. Bergeret à Paris», Le Livre de Poche, 1966, 250 páginas