António Rego Chaves
Corria o ano de 1866 e reinava D. Luís quando Hans Christian Andersen avistou pela primeira vez terras portuguesas. O poeta, famoso em todo o mundo pelos seus contos para crianças, exclama, uma vez atravessado o país vizinho: «Que transição, vir de Espanha para Portugal! Foi como voar da época medieval para os tempo modernos.» E ainda mal deixara Badajoz, a caminho de Lisboa, onde o esperava a hospitalidade dos amigos O’Neill, que conhecera na infância em Copenhaga, já louvava a «beleza pitoresca» de Elvas e anotava no seu inseparável diário de compulsivo escritor em momentos de recreio: «Éramos recebidos como se houvesse uma brisa de Inglaterra plena de conforto moderno, uma lufada de ar vinda do resto do mundo vivo.»
Victor Eleutério «acompanha» Andersen durante a estada no nosso país, por ocasião do bicentenário do seu nascimento, em 2 de Abril de 1805. Aplica a «broca da análise» (expressão de Mouzinho da Silveira) ao texto do autor de «Uma Visita a Portugal», vigia-lhe os passos, corrige-lhe erros e omissões, contextualiza juízos de realidade e de valor. Daí resulta uma colorida panorâmica do que éramos nos anos do governo «fusionista» dos regeneradores e dos históricos, entre 1865 e 1868, altura em que a Janeirinha, uma revolta popular contra o sistema fiscal imposto pelo desenvolvimentismo e pelas obras públicas do fontismo, determinará a sua queda. Oliveira Martins comentaria: «E como tudo estava safado, mole, roto, podre, fundiu-se tudo.» No entanto, foi esta «grande coligação», chefiada por Joaquim António de Aguiar e cuja «cabeça» era Fontes Pereira de Melo, o líder do Partido Regenerador, que fez promulgar, em 1867, os Códigos Civil e Administrativo, ao mesmo tempo que abolia a pena de morte para todos os crimes civis. O próprio Oliveira Martins reconhecerá que o fontismo – tornado quase inevitável depois do abortar das radicais reformas liberais de Mouzinho, tendo como alvo a auto-suficiência, a fim de compensar a perda do ouro e dos diamantes provenientes do Brasil –, «propôs-se modernizar Portugal e conseguiu-o. Sarjou o país de caminhos-de-ferro, inundou-o com capitais estrangeiros. Nacionalizou a consolidação da dívida, implantando o livre-câmbio e fez-nos entrar em cheio no regime do capitalismo europeu».
Andersen é, na generalidade das suas apreciações, lisonjeiro para Portugal, mas terá ocasião de comprovar que não há bela sem senão: o barulho dos ratos que correm no sótão da casa onde é acolhido perturba-lhe o sono, os rugidos de um leão vindo de África, acorrentado como se fosse um animal doméstico junto de uma residência vizinha, fazem-lhe temer pela vida, o vento uiva, o velho edifício range, as árvores vergam-se sob a força do vento. Visita um cemitério e depara com «figuras retorcidas de santos, umas imagens idiotas horríveis – um verdadeiro insulto ao puro mármore»; indigna-se com o preço exorbitante que tem de pagar para se deslocar de carruagem; espanta-se ao ver nas ruas principais da capital, puxadas por bois, «pesadas carroças de camponeses aparentando serem anteriores à época diluviana».
Sente-se o poeta no «paraíso terreal»? Escreve Victor Eleutério: «Já não são conhecidos casos de cólera, contudo a febre-amarela e a cólera-morbo deixaram os seus órfãos, que atulham asilos, incapazes de promover a felicidade dos seus tutelados, tornando o país um lugar de crianças tristes. O povo é sorumbático e profundamente depressivo. Campeia o suicídio. A imprensa trata-o como se fosse uma mera epidemia.» (…) «Como anda o país de analfabetismo? Arrasta-se. Oitenta e dois por cento não sabem ler, mais dez por cento não lêem, e os restantes, com o devido desconto aos que só lêem as gordas, dão vida a decretos, alvarás e editais.» Brincadeira de mau gosto, o Código de Seabra virá estabelecer que «a ignorância da lei não aproveita a ninguém»: mas quantos estariam aptos a soletrar as palavras com que a lei é escrita? No que respeita à falta de água, bem como aos odores humanos, uma frase anónima diz quase tudo: «Quando lavo os pés, sinto um grande alívio nos primeiros seis meses.» As instituições? Três palavras bastam para as caracterizar: corrupção, cunha, repressão. Política? «As coligações, conciliações e fusões fazem-se com trastes de homens, com ladrões e outros maganões, segundo a opinião contemporânea da condessa de Rio Maior.» Clima? O Verão é tórrido. Tal como outras figuras de destaque que nos visitaram – Henry Fielding, Alfred Tennyson, William Beckford – o dinamarquês acha-o insuportável. Lorde Byron, esse então, nunca perdoou às nossas cidades sem esgotos as diarreias e as picadelas de mosquito com que elas mimoseavam os estrangeiros. Onde estava, então, o «paraíso terreal»?
Talvez em Sintra. Talvez. Na vegetação de Sintra, que «é como se todas as regiões da Europa tivessem dado uma flor para este ramo». Ou em Setúbal. Isto porque o «papa das letras», António Feliciano de Castilho, «árcade póstumo» e «Tirteu dos merceeiros», como lhe chamou Antero de Quental durante a «Questão Coimbrã», enviou em 1867 à edilidade da cidade uma carta na qual afirmava que «ainda há dois dias, um insigne poeta dinamarquês, o nosso amigo Andersen, estanciado ali depois de percorrida a Europa, me escrevia que tinha encontrado ao cabo o Paraíso Terreal». Ora, esta expressão, recorda Victor Eleutério, aplicou-a Gil Vicente a Sintra, em 1529. E de tudo o que o dinamarquês escreveu sobre Portugal, apenas o que disse de Sintra poderia justificar que lhe chamasse «paraíso terreal». Sucede, porém, que «paraíso terreal» era mesmo uma espécie de ideia fixa na mente de Castilho e «em momento algum seria expressão que Andersen tivesse utilizado». Fica tudo dito.
Conclui o investigador português: «Sendo um dado adquirido que o escritor entra num estado grave de ansiedade e de extrema intranquilidade sempre que se sente na camisa-de-forças de uma estreiteza de ambientes e de visão, e respira mediocridade, a que de imediato responde, nos seus escritos, com o grito: “fugir daqui, ir para fora, ir para fora e respirar o ar do mundo”, as vezes que utilizou este tipo de expressões enquanto esteve entre nós são reveladoras do acanhado meio onde muitas vezes se encontrou. O que nos permite ler quanto o nosso ilustre visitante não quis escrever e que, para nós, é uma eloquente informação.» Enfim, partiu…para não mais voltar.
Victor Eleutério, «Os Meses Portugueses de Andersen no “Paraíso Terreal”», edição de Niels Fischer com o patrocínio da Embaixada da Dinamarca, 2005, 79 páginas