Polémicas e vias de facto (Querelas de filósofos)

António Rego Chaves

Diz Jean-Louis Hué: «Toda a história da filosofia grega pode resumir-se a uma sucessão de disputas. Oscilando entre debates teóricos e ataques pessoais, entre refutação e invectiva, esta prática da controvérsia, longamente utilizada nos diálogos platónicos, nunca cessou de exaltar os filósofos.» De facto, durante mais de 2500 anos, muitos pensadores ocidentais, sabendo que não poderiam fazer vingar as suas ideias sem refutar as dos seus coetâneos, não evitaram a polémica e, até, as vias de facto. No século XX, ficou célebre a cólera de Wittgenstein ao brandir um atiçador mesmo junto do nariz de Karl Popper, qual argumento irrefutável capaz de demonstrar a perenidade das suas teses, tal como, no diálogo platónico «Górgias», Calicles ameaçou agredir Sócrates quando não vislumbrou outra resposta a dar ao adversário. É um truísmo, mas sublinhemo-lo: os filósofos filosofam, mas só por isso não deixam de ser movidos por emoções menos violentas do que os homens que não cultivam o jardim da sabedoria.

Platão foi mestre de Aristóteles, embora nunca tenha simpatizado com ele: reprovava a sua maneira de viver, o extremo cuidado com que o estagirita se vestia, a sua «mania» de falar de mais. Quando se verificou o choque de opiniões, com base na existência da ideia como realidade distinta das coisas sensíveis, o discípulo manifestou sem rodeios a sua ingratidão, afastando o já debilitado octogenário do seu passeio favorito. Valeu-lhe Xenócrates que, auxiliado por alguns amigos, forçou o usurpador a pôr-se em fuga.

Com a aproximação da Idade Média, as controvérsias tornaram-se mais arriscadas: entre Pelágio e Santo Agostinho, não choveram apenas injúrias. O monge de origem britânica acentuava a autonomia da vontade e da liberdade humana, concedendo um papel secundário à graça divina; quanto ao bispo de Hipona, considerava o livre arbítrio uma ilusão. Pelágio acabaria por ser expulso de Roma, perseguido pela justiça imperial e dado como desaparecido na Terra Santa, em 422. Discordar pagava-se caro.

No século XII, a questão dos universais oporá Abelardo e São Bernardo de Clairvaux. O primeiro, insultado e ameaçado, será alvo de dois processos por heresia. Subjacente estará o conflito entre filosofia e teologia, ou seja, o direito de procurar a verdade e de, racionalmente, questionar a revelação e o dogma. O nominalismo de Abelardo poderia abalar a fé dos crentes, daí a perseguição implacável, nada cristã, que lhe será movida pela hierarquia eclesiástica católica, sempre de atalaia em matéria de heterodoxias.

Espinosa revelar-se-á como um dos grandes filósofos modernos que se sentiu obrigado a «matar o pai», no caso Descartes, sendo no entanto indiscutível quanto o pensador das «Meditações Metafísicas» o influenciou na juventude. Recusará – e não sem estrondo – o dualismo entre pensamento («res cogitans») e extensão («res extensa»), proclamando a unicidade da substância e recusando a distinção entre Deus e as coisas criadas. Tudo o que existe não constitui, para o autor da «Ética», senão o resultado da modificação de uma única substância: «Deus ou a natureza». «Heresia», estava visto.

Em pleno Iluminismo, a «deusa» razão será esmagada pela ausência de serenidade nas polémicas que oporão o «velho» Voltaire ao «jovem» Rousseau. Tudo os separa: a pertença a gerações diferentes, extroversão e introversão, cosmopolitismo e regresso à natureza, benefícios ou malefícios da instalação de um teatro em Genebra, o papel da Providência divina no Terramoto de Lisboa. A ruptura definitiva consuma-se na patética carta que o escritor de «As Confissões» remete ao criador de «Cândido ou o Optimismo», em 1760: «Não gosto nada de vós, Senhor… Deitastes Genebra a perder… Alienastes de mim os meus concidadãos… odeio-vos.» Voltaire, impiedoso, retratará Rousseau como doente mental que urge internar, um louco furioso pronto a morder nos seres humanos. Mas, como sugeriria Goethe, Voltaire representa então o fim de um mundo, ao passo que Rousseau marca já o começo de outro, novo – nosso.

Nietzsche, excessivo, começará por «adorar» Schopenhauer, acabando por lhe chamar «o maior caso de fabricação de moeda falsa psicológica que existe na história, com excepção do cristianismo». No entanto, diz Patrice Bollon, ele sabe bem que o filósofo de «O Mundo como Vontade e como Representação» estimulou o seu pensamento, «autorizando-o, senão forçando-o, a pensar contra ele». Nas palavras de Zaratustra, «o homem do conhecimento deve não apenas saber amar os seus inimigos como odiar os seus amigos. E é recompensar mal um mestre continuar sempre a ser seu discípulo.»

As relações pessoais entre Husserl e Heidegger representam um dos mais lamentáveis «casos» ocorridos entre pensadores contemporâneos. O manhoso assistente traiu o distraído catedrático, retirou-lhe depois a dedicatória que tinha inserido em «Ser e Tempo» e impediu-lhe o acesso à Universidade de Friburgo, da qual se tornara reitor com o beneplácito nazi. Nem sequer se dignou comparecer no funeral do mestre, em 1938. Num tal contexto de miséria moral, deixaram de importar as incompatibilidades entre fenomenologia transcendental e «filosofia do ser», ainda que Martin Heidegger fosse, como é hoje quase unanimemente admitido, o maior filósofo do Século XX.

Russell e Wittgenstein, Sartre e Merleau-Ponty, Foucault e Derrida, ilustram outras formas de desencontro, mas em que a integridade do carácter e o respeito mútuo dos intervenientes nunca serão postos em causa. Russell e Wittgenstein partilharam, apesar de todas as discordâncias, uma profunda amizade. Quanto a Sartre, sintetizaria sobre Merleau-Ponty: «Éramos iguais, amigos; iguais mas não semelhantes: compreendemo-lo de imediato.» No fim de 1981, quando Derrida é preso em Praga, Foucault será um dos primeiros signatários das cartas de protesto e intervirá na rádio; e, após a morte de Foucault, Derrida não hesitará em prestar ao seu opositor de ontem a homenagem que lhe considerava devida. Nobrezas do gesto que Heidegger, decerto, não entenderia…

«Le Magazine Littéraire», «Les grandes querelles entre philosophes», Outubro de 2007, 98 páginas