António Rego Chaves
Foi a adolescência e líamos Alexandre Dumas. D’Artagnan, Athos, Porthos e Aramis pareciam-nos gigantes mitológicos – enfim, Aramis um pouco menos, pois começávamos a detestar o odor a sacristia. Adiante. O valente D’Artagnan, o nobre Athos, o generoso Porthos, eram belos símbolos de amizade, lealdade, solidariedade. Palavras que nunca rimaram com traição.
Aprendemos com eles o que podia rimar e o que não podia rimar na vida de todos os dias. Talvez por isso alguns de nós desconfiássemos de quem não tinha alento, ou coluna, ou coração, para vir a ser um D’Artagnan, ou um Athos, ou um Porthos. Desconfiámos pelos tempos fora. E esforçámo-nos, passo a passo, por ser dignos dos nossos heróis, por não os envergonhar.
Agora chega-me o ímpeto de reencontrar os meus velhos amigos que leram Alexandre Dumas (nós dizíamos «Dúmas», sem ponta de «mariquices», não «Dumás», à menina que fala «franciú») ao mesmo tempo que eu. Alguns foram, à sua maneira, D’Artagnan, Athos, Porthos. Nem um foi espião como Milady, assassino como Felton, manhoso como Mazarino. Também por essa razão os recordo com intensa saudade e desejaria que todos eles pudessem folhear, hoje, o soberbo «dossier» do «Magazine».
Nós, de Alexandre Dumas, pouco mais sabíamos do que o nome, e apenas presumíamos que ele tivesse existido. Só depois, muito depois, quando já não o líamos nem relíamos, viemos a saber que não se tinha limitado a escrever «Os Três Mosqueteiros», «Vinte Anos Depois», «O Visconde de Bragelonne», «O Conde de Monte-Cristo». Que fora autor de peças de teatro, como «Henrique III», «Antony» «Don Juan de Maraña», «Kean». Que fora «patrão» de jornais, exilado político, activo admirador de Giuseppe Garibaldi. Que fora o mais lido dos escritores do século XIX, ainda mais lido do que Charles Dickens. Que não fora uma espécie de Porthos, esvaziando, pela noite fora, em intermináveis ceias que tinham lugar em Paris ou um pouco por toda a França, inúmeras garrafas de Borgonha e de Bordéus: nada disso, o escritor trabalhava de sol a sol e muitas vezes às horas em que todos dormiam (é certo que contava com a ajuda dessa quase desconhecida casta explorada a que o mundo literário chama e chamava «negros», gente como Auguste Maquet, aliás co-autor de «Os Três Mosqueteiros», de «Vinte Anos Depois» e de «O Visconde de Bragelonne») e pouco ou nenhum vinho bebia, a não ser com água lisa ou água de Seltz. Preferia limonada. Mas gostava de cozinhar para amigos, mesmo um simples macarrão à napolitana, um «risotto», uma caldeirada.
Mas tais pormenores não nos interessavam nada, o nosso reino era o das suas personagens – e que personagens! Além do gascão D’Artagnan, Athos, Porthos, Aramis, Luís XIII, Luís XIV, Richelieu, Mazarino. Todas, por igual, eram reais – para nós, ao contrário do que sustentava Hegel, todo o ideal era racional. E o mundo criado por Dumas era, sem dúvida, bem mais ideal do que aquele onde vivíamos, porque permitia transformar o sonho em realidade. Bem mais racional e ideal que o dos «fundamentais» autores que também ocupam as páginas do «Magazine» deste Fevereiro: Malcolm Lowry, ou Amos Oz, ou Paul Celan. Porque, de alguma forma, em todos eles predomina o real, o terrível peso de existir, a angústia perante a vida e a morte. Nada disso se passa com os mosqueteiros de Dumas: eles vivem a sua vida – e ocultam, pudicamente, os males físicos ou psíquicos que os afligem. Não são intelectuais, nunca falam dos seus compatriotas Descartes, Pascal, Malebranche – são homens de armas, usam uma capa, manejam uma espada, comem, bebem, lutam pelo que julgam ser justo ou seu dever lutar. Nós, se hoje os procurarmos, talvez reencontremos o alvoroço de pegar num livro por puro prazer. Imersos nos actos e não nos pensamentos, nos factos e não nos raciocínios, nas consequências e não nas causas. Acaso ainda haja um tempo para trabalhar e um tempo para tirar umas férias. Um tempo para chorar e um tempo para rir. Um tempo para os Malcolm Lowry e os Amos Oz e os Paul Celan – e um tempo, se possível mesmo muito tempo, para (re)acompanhar três dos quatro mosqueteiros.
George Sand, talvez como ninguém na sua época, fez justiça a Dumas: «A ele que transporta um mundo de acontecimentos, de heróis, de traidores, de mágicos, de aventureiros, a ele que é o drama em pessoa, credes que os gostos inocentes não o teriam destruído? Foram-lhe necessários excessos de vida para renovar sem descanso uma enorme fonte de vida.» Quanto a Guillaume Apollinaire, chamou-lhe «o maravilhoso Dumas». Percorrendo agora o «Magazine Littéraire», nada nem ninguém desmente a voz do poeta. Ramon Fernandez atreveu-se, mesmo, a escrever, em 1941, num texto histórico recuperado pela prestigiada revista: «Claro que [Dumas] não é Balzac, nem Flaubert, nem Proust, estamos de acordo. (…) «Mas sucede-me por vezes imaginar um Proust que tivesse a vivacidade de um Dumas.» Quanto a Roland Barthes, não foi menos ousado, em 1959: «’Os Três Mosqueteiros’ é o folclore da França, o equivalente moderno, secularizado, se assim se pode dizer, dos antigos contos de fadas; é nesta história, conhecida de todos os franceses por uma espécie de saber infuso, que eles melhor podem projectar, reconstruir, o sonho do mundo.» Tudo correcto, excepto o «monopólio» concedido aos franceses: Alexandre Dumas não é propriedade de nenhum povo, podem reivindicá-lo sucessivas gerações de adolescentes de todo o mundo que o leram desde meados do século XIX. Sucessivas gerações de adolescentes que, incluindo os meus velhos amigos e eu, mergulharam nos seus livros, acompanharam os seus cometimentos, tantas vezes desejaram viver na época deles e lamentaram que a sua fosse tão desértica de aventura, tão pobre de sonho, tão desprovida de magia.
«Le Magazine Littéraire», Fevereiro de 2010, 98 páginas