António Rego Chaves
O romancista, memorialista e ensaísta catalão Juan Goytisolo (1931) escolheu desde há muito viver em Marrocos, depois de o seu antifranquismo o ter obrigado durante anos ao exílio em Paris. «Espanha e os Espanhóis» (1969), originalmente publicado em alemão, para fugir à censura da ditadura, só em 1979 seria editado em castelhano.
Faz notar o autor: «Enquanto os franceses não consideram tais os antigos habitantes da Gália, nem os italianos têm por italianos os romanos ou os etruscos, para os espanhóis é absolutamente fora de dúvida que Sagunto e Numância são gestas suas (precedente claro, dirão, da resistência final frente a Napoleão), do mesmo modo que Séneca era ‘andaluz’ e Marcial ‘aragonês’, como se o perfil actual dos espanhóis não fosse um facto de civilização e de cultura, mas uma ‘essência’ prévia que tivesse marcado com o seu selo os sucessivos moradores, já compatriotas nossos quinhentos anos antes do nascimento de Cristo.» A verdade, porém, é que os celtas, os iberos, os romanos e os visigodos nunca foram espanhóis, «foram-no, sim, em contrapartida, a partir do século X, os muçulmanos e judeus que, em estreita convivência com os cristãos, configuram a peculiar civilização espanhola, fruto de uma tríplice concepção do homem, islâmica, cristã e judaica». Os cristãos dedicavam-se de preferência à guerra, formando a casta militar; os judeus assumiam as funções de ordem intelectual e financeira; os mouriscos cultivavam os ofícios mecânicos e artesanais.
Em finais do século XV, a casta militar de Castela impõe-se às minorias divergentes e a zonas periféricas da Península. «Sob os Reis Católicos, o ideal castelhano, religioso e guerreiro, conduz sucessivamente à unidade nacional, ao desaparecimento do último reino árabe, à expulsão dos judeus, ao descobrimento e à conquista da América, às guerras religiosas empreendidas na Europa em nome da Contra-Reforma.»
Surgem interrogações: «Em vez de falar de Espanha, não seria melhor falar das Espanhas? O desequilíbrio profundo que existe entre os diversos países da Península é camuflado pela ambiguidade genérica de uma etiqueta comum. A realidade espanhola da Catalunha não é a mesma que a da Galiza, nem a da Andaluzia coincide com a do País Basco. Em tais condições, não será ceder a uma simplificação grosseira, a uma facilidade preguiçosa, falar de Espanha no singular, mascarando assim a existência de realidades distintas?» Aventam-se respostas: «Não existe uma Espanha só, existem várias Espanhas de diferentes níveis económicos, sociais e culturais: qualquer tentativa de as reduzir a um denominador comum leva-nos a sacrificar a realidade à arbitrariedade do método. Melhor do que sobre Espanha e os espanhóis teria sido escrever sobre as Espanhas e os espanhóis de cada uma delas (castelhanos, catalães, bascos, galegos).» No entanto, e dado que Castela, entre os séculos XVI e XIX, exerceu uma influência determinante na elaboração das formas de vida próprias de cada região de Espanha, o autor opta pela visão tradicional do «seu» Estado, sem procurar destrinçar perante os leitores aquilo que, de facto, distingue os vários países de toda a Península Ibérica – onde Portugal, aliás como parecem considerar muitos textos de origem ideológica castelhana, não ocupa um espaço geográfico visível…
Durante a II República, a linguagem da Falange e a dos novos grupos fascistas «bebem nas fontes do poeirento ideal do império da casta militar de Castela: o do cavaleiro cristão, místico e guerreiro, cuidando do seu modo de ser e do seu estilo de vida, exaltando a ‘obediência ao chefe’, o ‘imperativo poético’ e a ‘disposição combativa’. Para José Antonio Primo de Rivera, o espanhol é um ser dotado de ‘essências perenes’, e, como tal, destinado a influenciar e a dominar os outros. Por conseguinte, o programa doutrinal destes grupos será ferozmente anticatalanista e anti-semita: quatro séculos depois da sua expulsão, os judeus continuam a ser ‘os inimigos irreconciliáveis de Espanha’. A linguagem e o estilo da Falange são totalmente anacrónicos, mas a sua demagogia social encontra o terreno preparado nos sectores rurais e urbanos de uma grande parte da Península, tradicionalmente tutelados pela Igreja e de mentalidade pré-industrial. Desde a sua criação, os novos grupos contam com a simpatia activa de numerosos chefes militares e membros da hierarquia religiosa, bem como com o apoio material da Itália de Mussolini.» (…) «Quando a ‘república de intelectuais’, patrocinada por Ortega y Gasset, Marañon e Pérez de Ayala, se confronta com a prova trágica de Julho de 1936, os seus padrinhos desertaram do seu campo e, corrigindo as suas opiniões anteriores, acabarão por transigir os três, e até por pactuar, no caso de Marañon, com o regime autoritário que a liquida.»
Considerando, em 1969, que «a história espanhola dos últimos cem anos é um perpétuo regatear dos interesses cruzados da classe latifundiária, da burocracia e da administração madrilenas com os das burguesias ‘avançadas’ da Catalunha e do País Basco», Juan Goytisolo acrescentaria, dez anos depois, no último capítulo deste ensaio: «As repressões e os tabus, os hábitos mentais de submissão ao poder, de aceitação acrítica dos valores oficiais, que hoje nos condicionam, não ruirão de um dia para o outro. Ensinar cada espanhol a pensar e agir por sua conta será um trabalho difícil, independentemente das vicissitudes políticas do momento. Haverá que aprender pouco a pouco a ler e a escrever sem medo, a falar e a ouvir com plena liberdade. Um povo que viveu quase 40 anos em condições de irresponsabilidade e de impotência é um povo necessariamente doente, cuja convalescença se prolongará na razão directa da duração da sua enfermidade.»
Cremos que a convalescença ainda não findou, apesar de o doente ter experimentado espectaculares melhoras. Na verdade, como afirmou o historiador Pierre Vilar, em Espanha «continuam a existir ‘latifundia’ e ‘minifundia’, homens sem terra, terras sem homens e terras onde todos se apinham.» Teremos esperança de cura para tais males?
Juan Goytisolo, «Espanha e os Espanhóis», 90 Graus, 2008, 120 páginas