Do privilégio de comer
António Rego Chaves
Sugiro ao leitor que comece por ler o índice deste livro, que inserimos no final do texto. Poderá verificar que a mesa dos reis de Portugal possuía múltiplas facetas, por vezes reveladores da estrutura social da sociedade monárquica em que os portugueses viveram durante quase oito séculos.
Outro aspecto há que anotar em relação ao presente trabalho colectivo, bem demonstrativo de como a historiografia portuguesa se desenvolveu desde que Oliveira Marques, no trabalho pioneiro que foi «A Sociedade Medieval Portuguesa/Aspectos da Vida Quotidiana» (1964), se ocupou da mesa dos nossos antepassados, deixando-nos um livro escrito com vivacidade, nos antípodas dos róis de factos alinhados por tantos académicos: o grande número de historiadores – e sobretudo de historiadoras – que vimos nascer em Portugal nas últimas décadas e que vieram preencher imensas lacunas que tanto se faziam sentir no conhecimento de antigos usos e costumes.
Apresentando a obra, afirma Maria Helena da Cruz Coelho que este livro, consagrado à mesa dos mais elevados estratos sociais (reis, rainhas, grandes senhores), «nos abre o teatro da mesa no seu máximo esplendor». E desenvolve o seu raciocínio: «Os encenadores-coordenadores da obra estiveram atentos a todos os cenários e actos que a ‘peça’ teatral devia trazer a público: dos espaços, objectos, alimentos e oficiais da mesa às cerimónias, etiquetas, imagens e representações da mesa. Os actores-autores dos estudos desempenharam os seus papéis com a competência da sua arte e saber, e com a sua singular personalidade e mundividência.»
Como salientam Ana Isabel Buescu e David Felismino, «a ostentação alimentar era a principal forma de os grupos dominantes mostrarem a sua superioridade. As escolhas alimentares, designadamente nas possibilidades quantitativas e qualitativas da tríade carne-pão-vinho, eram ditadas por critérios de diferenciação e por privilégios sociais.» Rita Costa Gomes concretiza: «Longe de constituir um aspecto anedótico ou um pormenor da vida quotidiana, o consumo de alimentos e as tarefas necessárias ao aprovisionamento e à distribuição de comida foram, na corte, objecto de uma evolução peculiar, quer ao nível cerimonial, quer burocrático, evolução essa que veio influenciar o modo como a corte se estruturou.»
Também o povoléu português mereceria um livro tão bem ilustrado quanto este, mas que seria sem dúvida menos volumoso, porque não haveria muito que contar acerca das requintadas iguarias da sua ancestral – e forçada – austeridade. Sem esquecer que, como ensinou Jacques Le Goff, o Ocidente medieval é um mundo à beira do limite, incessantemente ameaçado, muitas vezes devido a causas naturais, pelo risco de a sua subsistência deixar de estar garantida. Por outras palavras, brutais mas eloquentes: «O Ocidente medieval é, em primeiro lugar, um universo da fome» – uma fome que se limita quase sempre, acentue-se, a um único extracto social, o dos pobres.
Resta-nos esperar que o leitor de se delicie com o sumptuoso espectáculo oferecido pelas lebres, perdizes, mariscos e lampreias com que os reis e outros «grandezas», laicas e eclesiásticas, desde a Idade Média, se regalavam nos paços e castelos, entre baixelas de ouro e prata, marfins, porcelanas e múltiplos salamaleques, enquanto boa parte da arraia-miúda, acoitada à sua volta em miseráveis tugúrios nas cidades, nas vilas e nas aldeias, ou perdida pelos caminhos, sem abrigo, se ia (des)contentando com pão, favas, castanhas e bolotas – ou, pior ainda, «rebentava» de fome…
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Temas abordados nesta obra, coordenada por Ana Isabel Buescu e David Felismino, com apresentação de Maria Helena da Cruz Coelho, e respectivos autores: A Mesa dos Reis – Acto e Teatro (Maria Helena da Cruz Coelho); Sobre a construção de um campo historiográfico (Ana Isabel Buescu e David Felismino). CASA E OFÍCIOS DA MESA: Os convivas do rei e a estruturação da corte – séculos XIII a XVI (Rita Costa Gomes); A mesa, o leito, a arca, a mula. Como se provia ao sustento e itinerância das rainhas de Portugal na Idade Média (Ana Maria S. A. Rodrigues); Mesa e aprovisionamento na casa dos duques de Bragança. Orgânica interna e cerimonial (Mafalda Soares da Cunha); «Ofícios de boca» na Casa Real Portuguesa – séculos XVII e XVIII (Ana Marques Pereira); Cozinha, família e cavalariças: padrões de consumo da aristocracia de corte em Portugal no século XVIII (Nuno Gonçalo Monteiro). A MESA DOS REIS. ESPAÇOS, OBJECTOS E UTÊNCIAS: Pôr a mesa no Paço da Ribeira. Espacialidades e encenações da refeição no interior do palácio régio (Bruno A. Martinho); Artes de mesa e cerimoniais régios na corte do século XVI. Uma viagem através de obras de arte da ourivesaria nacional (Maria do Carmo Rebello de Andrade); A baixela de François Thomas Germain para a mesa de D. José I (Inês Líbano Monteiro); Deslumbramento, profusão e ordem. Aspectos decorativos da mesa real em finais do século XVIII (Cristina Neiva Correia). OS REIS À MESA. CERIMÓNIAS E ETIQUETAS: O rei à mesa entre o fim da Idade Média e o Maneirismo (Isabel dos Guimarães Sá); Entre comidas públicas e merendas íntimas: alimentação, cerimonial e etiqueta de mesa no tempo dos Filipes (Ana Paula Megiani); A construção da mesa do rei (Jorge Crespo); Festas diplomáticas: as festividades de João Gomes da Silva, conde de Tarouca, em Utrecht e Viena (Angela Delaforce); Rituais e protocolos das mesas reais no século XVIII (Leila Mezan Algranti); A mesa das rainhas de Portugal (séculos XV –XVIII): etiqueta e simbólica (Maria Paula Marçal Lourenço e Ricardo Fernando Pinto). OS ALIMENTOS: A mesa itinerante dos nossos primeiros reis (Iria Gonçalves); À mesa do rei. Cultura alimentar e consumo no século XVI (Ana Isabel Buescu); Encenação de Terça-Feira de Entrudo na corte – «Auto dos Físicos» de Gil Vicente (Maria José Palla); A América à mesa do rei (Isabel Drumond Braga); Dieta e gosto na mesa régia. Notas sobre dietética e alimentação na corte portuguesa – séculos XVII- XVIII (David Felismino). IMAGENS E REPRESENTAÇÕES DA MESA: A «mesa do rei» como metáfora do poder (Maria Adelaide Miranda e Luís Correia de Sousa); A narrativa pictórica do banquete do rei nos séculos XVII e XVIII (Marco Daniel Duarte); Aparato e cenografia. A representação das artes da mesa na azulejaria do Portugal moderno – séculos XVII e XVIII (Maria Alexandra Gago da Câmara); Banquetes, jantares, merendas e refrescos nas quintas de recreio. Realidade e apresentação (Ana Duarte Rodrigues).
Vários Autores, «A Mesa dos Reis de Portugal», Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2011, 478 páginas