António Rego Chaves
«Mestre espiritual ou profeta do fim do mundo, líder de um povo ou rabi inspirado», é difícil saber hoje quem foi Jesus. Sabemos, sim, o que o Novo Testamento diz que ele foi, também sabemos como os exegetas especulam na tentativa de decifrar o seu mistério. Mas continuamos a saber muito pouco, apesar desta mensagem «definitiva» de Daniel Marguerat: «O crente contempla os traços deixados pelo homem de Nazaré na história e nos textos. Chega à conclusão de que existe uma chave para este enigma. Esta chave, diz ele, é a fé». Seja, quem ousará duvidar de tão sensato silogismo? Mas os outros, os sem fé, aqueles com quem Jesus talvez estivesse ainda mais preocupado do que com os crentes, que podem eles concluir acerca do «homem da Nazaré»?
Lido este documentado e sólido texto do padre Gérard Bessière, poderemos verificar que também o autor duvida das suas certezas ou está certo das suas dúvidas – uma das quais, para quem escreve um ensaio sobre tal personagem-charneira da cultura ocidental, seria precisamente a de saber se está a dissertar acerca de Deus ou acerca de um carpinteiro visionário que viveu e foi crucificado nos primeiros decénios da nossa era, em Jerusalém. Pouco importará a resposta aos agnósticos e ateus. Importará, sim, a honestidade das suas interrogações, implícitas ou explícitas. Em suma, o sacerdote crê em Deus e procura, sem vestígio de arrogância, descodificar a mensagem de Jesus, socorrendo-se de toda a espécie de testemunhos. Não é pouco, até talvez seja de mais, vindo o esforço de quem vem, investido, como muitos presumiriam que está, do poder de ensinar aquilo em que se pode – ou deve – acreditar em matéria de cristianismo.
Habilmente estruturada, a obra trilha o longo e penoso caminho percorrido pelo Crucificado desde o baptismo por João Baptista à Ressurreição, fazendo-nos deter nas fontes do conhecimento histórico do cristianismo (Plínio, o Jovem, Tácito, Suetónio, Flávio Josefo e quinze das quinze mil páginas do Talmude), no seu nascimento (Mateus e Lucas), no contexto político e religioso em que se inseriu a existência do filho de Maria e de José (este descendente do rei David), na sua concepção da mulher, na sua (ir)responsabilidade na formação da Igreja Católica e na comparação do Jesus do Islão com o dos Evangelhos.
Curioso anotar as expectativas criadas por Jesus, não perante o alto clero de Jerusalém e o legalismo hipócrita dos fariseus (o primeiro conformado com o jugo romano e aparentemente nada preocupado com a independência do povo judeu, os segundos refugiados na piedade individual, multiplicando exortações à penitência e aguardando uma libertadora intervenção divina), mas em relação aos insurrectos que, ao lado de Judas, o Galileu, se revoltam no ano 6 d. C. contra o ocupante e optam pelo início da guerra de libertação nacional, recusando o colaboracionismo. Só que Jesus, embora atacando os meios sacerdotais cúmplices dos romanos, opta pela paciência, talvez porque a sua «revolução» é outra e sem dúvida muito mais radical, pois ela consiste prioritariamente em «inaugurar o Reino de Deus», passe essa metáfora ou não passe pela expulsão das tropas estrangeiras do território de Israel. Também será considerado, como os dois que a seu lado serão crucificados, «bandido, malfeitor e subversivo» – mas ninguém o poderá assimilar a um Barrabás ou tomar por percursor dos zelotas que a partir do ano 66 se revoltarão contra o opressor. É outro o seu caminho, que até envolverá alguém como o cidadão romano Paulo de Tarso, «o apóstolo dos gentios»: anuncia a chegada do Reino de Deus, ordena aos que o escutam que se «convertam», isto é, que revolucionem os seus espíritos. Só então os cegos poderão ver, os coxos andarão, os leprosos ficarão limpos, os surdos ouvirão e os pobres deixarão de ser pobres, os doentes conquistarão a saúde, os prisioneiros, os escravos e os oprimidos serão libertados. Em suma: o objectivo sonhado é «transformar as relações entre os homens, revigorar o povo, recriá-lo na justiça e na generosidade vindas de Deus».
Longe de se fixar em círculos restritos como os formados pelos aristocráticos saduceus ou os cenobitas essénios de Qumrân, Jesus convive com o povo, ensina que «o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado», isto é, que o legalismo, em quaisquer circunstâncias, não deve impedir de servir a vida e salvar o homem, em nome do amor, da misericórdia e da justiça. Revela, mesmo, um certo desprezo pelo formalismo ritual, ao determinar: «Se fores apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentar a tua oferta.» Diz o autor: «Do cumprimento das coisas exteriores, socialmente verificável, dos ritos e das prescrições, passa-se para o primado do amor, para a atenção para com o próximo, para o olhar em direcção ao interior do homem e para as intenções do coração.» Não lhe importa a moral codificada, mas a união viva com Deus. Por isso «o apelo à não-violência, à fraternidade universal, à generosidade sem cálculo e sem medida tem nele a sua fonte inesgotável.»
Dirige-se aos doentes, não discrimina os publicanos, colaboracionistas cobradores de impostos, olha com benevolência os samaritanos, odiados pelos judeus, aproxima-se das mulheres, aconselha aos discípulos que entrem «no quarto mais secreto e, fechada a porta», rezem em segredo ao Pai. Subvertidas as ideias recebidas sobre a divindade, revelado o mais humano dos deuses, explicado que «o grão de trigo, lançado à terra, se morrer, dá muito fruto», resta-lhe aceitar a crucificação, certo da Ressurreição ao terceiro dia. Não quisera ser o Messias político esperado por muitos, pois era noutras profundezas que pretendia plantar a semente de uma nova humanidade. O grotesco «cristianismo real» das igrejas instituídas encarregar-se-ia, ao longo dos séculos, de tornar irreconhecível o utópico «cristianismo ideal» pelo qual deu a vida na Páscoa.
Gérard Bessière, «Jesus, o deus surpreendente», Quimera Editores, 2003, 192 páginas