António Rego Chaves
Louve-se desde já a reedição em língua portuguesa, por preço acessível, da tradução do «presencista» Adolfo Casais Monteiro (publicada pela primeira vez em 1940, pela prestigiosa Editorial Inquérito), na colecção de livros de bolso da Europa-América, da fascinante obra de Tolstoi que é «A Morte de Ivan Ilitch». Sobre ela escreveu Tchaikovski em 1886, data da sua aparição: «Li “A Morte de Ivan Ilitch”. Mais do que nunca estou persuadido de que o maior dos escritores-pintores que viveram no mundo, em qualquer época que seja, é Lev Tolstoi. Basta ele para que os russos não baixem envergonhadamente a cabeça quando se faz o balanço, perante eles, de tudo o que a Europa produziu de grande.» E o crítico musical e libretista Vladimir Stassov afirmou em carta ao autor: «Nenhum povo, em nenhuma parte do mundo, possui uma obra tão genial. Tudo é pequeno, mesquinho, em comparação com estas setenta páginas.»
Tolstoi, no entanto, deixara de «acreditar» na literatura, pelo menos desde que terminara, em 1877, um dos seus mais populares romances, «Ana Karenina». «A arte é a mentira, e já não posso amar uma bela mentira» – confidenciara. Nove anos depois, «A Morte de Ivan Ilitch» só para um observador superficial poderá colocar o escritor em aparente contradição com a sua negatividade perante o trabalho a que tinha consagrado grande parte da sua existência e o tornara célebre na Rússia e em todo o mundo ocidental. De facto, aqui, nesta admirável síntese, está bem presente quase tudo o que, no momento, obcecava o autor de «Guerra e Paz»: a hipocrisia, o egoísmo e a frivolidade da sociedade burguesa, a degradação das relações profissionais e familiares, o desejo de solidariedade, a morte, Deus. Tal como Lévine, a complexa personagem de «Ana Karenina», ele descobriu que não pode suportar não saber o que é e com que finalidade existe. Mas, ao contrário da criatura ficcionada, o criador não assumiu ainda que «é necessário viver não para si mas para Deus».
«Sei que morrerei, mas não estou intimamente persuadido disso», escreveu o filósofo Vladimir Jankélévitch glosando uma afirmação do ensaísta católico Jacques Madaule. Ivan Ilitch, devorado pela doença, sabe-se ameaçado pela «solidão desértica da agonia». No momento em que estiver certo de que já não pode continuar a exercer a sua actividade profissional como competente, poderoso e respeitado magistrado, de que o relacionamento com a mulher não passa de um confronto permanente entre dois seres que em tempos se amaram mas que passaram a odiar-se, de que os amigos manifestam uma total indiferença em relação à sua tragédia, ser-lhe-á fácil prever, não apenas que morrerá só, como sublinhava Pascal, mas que ninguém o poderá ajudar durante a agonia. O cancro na região abdominal – cujos sintomas Tolstoi nos apresenta com estudado rigor – não o poupará, nem lhe poupará todos os tormentos físicos e morais que na generalidade dos casos acompanham o seu desenvolvimento. «E era obrigado a viver assim à beira do abismo, completamente só, sem um ser que o compreendesse e lamentasse.» (…) «Esmagava-o um peso imenso. “Não é possível que todos estejam destinados a conhecer este pavor atroz!”»
Todos os homens são mortais? Claro, ele conhecia bem aquele exemplo de silogismo que aprendera no manual de lógica de Kieseweter: «Caio é homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal». Mas o silogismo também se aplicaria a ele, o doce menino Vania, Ivan Ilitch, com a sua mamã e o seu papá, a sua criada, o seu cocheiro, com todas alegrias, todos os sofrimentos, todos os entusiasmos da infância, da adolescência, da juventude? Seria injusto, seria horrível, seria estúpido de mais. A voz do coração recusa-lhe o inapelável veredicto da razão.
Ivan Ilitch irá, porém, descobrir que a sua solidão não é total. Restam-lhe Gueraissime, o saudável, robusto e alegre criado que o auxilia sem repugnância no dia-a-dia de doente acamado e que encara com naturalidade a morte de todos os homens, incluindo a do patrão e a sua própria, e o mais jovem dos filhos, um colegial que não consegue disfarçar o seu pesar perante o suplício a que o pai está a ser submetido. Quanto à crueldade de Deus, ela surge-lhe como revoltante: «Porque fizeste tudo isto? Porque me trouxeste aqui? Porque me atormentas assim?» – pergunta. E Tolstoi, o místico Tolstoi, comenta: «Não esperava qualquer resposta e chorava por não haver e por não poder haver resposta.»
Duas horas antes do fim, o filho aproxima-se da cama e beija-lhe docemente a mão. Ivan Ilitch supera então, pela primeira vez durante a agonia, o seu solipsismo, sente-se invadido por uma intensa piedade pelo menino que o chora – e até pela mulher que amou e por quem foi amado apenas durante os primeiros anos do casamento. Extinguir-se-á já sem ser dominado pelo medo de se extinguir, apaziguado pela compaixão em relação ao sofrimento dos que o acompanham nos últimos momentos de vida. Dir-se-ia ter conquistado, ao sair de si e ao abrir o seu «Eu» à dor experimentada pelo Outro, o direito moral de morrer em paz. E, até, o inesperável privilégio de não morrer só.
Leão Tolstoi, «A Morte de Ivan Ilitch», Europa-América, 2004, 84 pag., 6 €