António Rego Chaves
A 23 de Novembro de 1996, precisamente 20 anos depois da sua morte, por ocasião da entrada das cinzas de André Malraux no Panthéon, não faltaram em França as públicas homenagens ao escritor, ao combatente, ao ministro da Cultura do general de Gaulle. Foi recordada a sua coragem física na qualidade de jornalista na Indochina, na causa dos republicanos espanhóis e no «maquis» de Corrèze, bem como a coragem política que evidenciara na defesa da ideia de liberdade, num século atravessado por toda a espécie de ditaduras. Muitos não se inibiram de sustentar que, para o autor de «A Condição Humana» e de «A Esperança», só a Arte poderia triunfar do tempo e da morte, embora tal afirmação estivesse longe de ser válida para o último Malraux.
Philippe Douste-Blazy escreveu: «A 23 de Novembro, não serão apenas os franceses que se comoverão. Haverá também as testemunhas do seu discurso na Acrópole; os americanos ou os japoneses a quem ele ofereceu o sorriso da Gioconda; os espanhóis que lhe devem, no dizer de Jorge Semprun, um dos mais belos livros alguma vez escritos sobre Goya; os admiradores de Braque, Masson, Le Corbusier, Chagall e de todos os artistas que terá ajudado; os povos dos países da África aonde o general de Gaulle o enviou em representação da França, no dia da sua independência; essas terras da América Latina cujos libertadores tantas vezes evocou; a imensa Ásia, enfim, em relação à qual terá desempenhado um papel clarificador.»
Poucos se atreveram a apontar a dimensão metafísica do pensamento de André Malraux. Cito uma das excepções, Henri Godard: «A vida moderna faz o que pode, por exemplo no contacto com a morte, para nos poupar a essas questões sobre a natureza do homem, sobre o seu lugar no universo ou sobre o sentido da sua existência. Quando, apesar de tudo, elas se colocam, as ideologias mais representativas do nosso tempo empenham-se em desqualificá-las como efeitos de alienação ou de racionalização. A obra de Malraux, em cada um dos três domínios do romance, dos escritos pessoais e dos escritos sobre a arte, é a de alguém que recusa esta desqualificação; melhor, que pensa que o homem nunca extrai de si próprio o que tem de melhor senão para realçar o desafio de uma experiência existencial.» Repudiando qualquer tentativa de apropriação da metafísica pelas religiões, concluía que «colocar enquanto agnóstico as questões que outros agnósticos querem deslocar ou afastar e que só os crentes tomam a sério não pode senão tornar problemática a posição de um escritor perante os seus contemporâneos», mas que «é precisamente por isso que a voz de Malraux mais merece ser escutada».
Claude Tannery aguardou até ao fim de André Malraux para publicar este livro, como narra na última página do seu ensaio. Segundo conta, depois de uma entrevista que o escritor lhe concedeu em 1972, este confessou a Sophie de Vilmorin que pela primeira vez encontrara alguém que lhe prometera esperar até à sua morte para escrever sobre si. Fraco consolo, pensarão alguns, mas decerto uma imensa tranquilidade para quem nunca cessou de se interrogar e de prever que até ao último momento poderia alterar o seu pensamento sobre matérias tão essenciais como o sentido da vida e da morte.
É para esta inquietação que nos remete o autor ao denunciar, preto no branco, a leviana idiotice posta a circular como profecia de Malraux, aliás desmentida pelo próprio, travestido por algumas zelosas alminhas em Bandarra da sacristia comum europeia: «O século XXI será religioso ou não será». Leviana idiotice porque o «tudo ou nada» nunca fez parte dos modos do seu pensamento e sobretudo porque, desde 1955, se convencera de que «um renascimento religioso se basearia em dados que não são os nossos» e de que tal problema se viria a colocar «de um forma tão diferente daquela que conhecemos como o foi o cristianismo para as religiões antigas».
Verdade seja dita, o último Malraux é um homem desolado. Um homem desolado e capaz de nos desolar quando nos garante que a revelação é que nada pode ser revelado e que o impensável não implica algo ou alguém, pois, se implicasse algo ou alguém, já não seria o impensável. Um homem desolado e capaz de nos desolar quando sustenta que «o incognoscível absoluto não é um domínio de dúvida; é tão imperioso como as fés sucessivas da humanidade». Ainda um homem desolado e capaz de nos desolar, quando nos incita a viver a vida sem nos perguntarmos qual é o sentido da vida.
Um homem desolado e capaz de nos desolar. Que pode isto implicar? Claude Tannery responde, em nome – ainda que sem procuração – de André Malraux: «Que a vida seja orientada pelo ‘mistério insólito da vida’ e não pelo ‘mistério invencível da morte’.» (…) «Que o desconhecido do impensável não apavore mais a Humanidade, que o espanto metafísico já não seja sentido como um drama, e até mesmo como um abandono, que se eleve uma prece de louvor ao aleatório e ao espanto.»
Concluindo: «Queremos que a nossa vida e a vida dos filhos dos nossos filhos sejam orientadas pelo ‘mistério invencível’ da morte ou que o sejam pelo ‘mistério insólito’ da vida? Queremos continuar a viver tentando subscrever um seguro para o além ou antes queremos viver entoando um hino à vida? Queremos um Deus dos mortos ou um Deus dos vivos? Seremos capazes de nos imunizar contra a questão do sentido? Seremos capazes de aceitar o espanto e viver, fazer vida com a vida, sem ter necessidade de dar um sentido à vida, tal como somos capazes de viver um amor sem precisarmos de dar um sentido ao amor? Seremos capazes de inventar a prece de louvor à metamorfose e ao aleatório, à sua ‘incerteza englobante’ e à sua infinita sucessão de encarnações e ascensões?»
A todos nos caberá encontrar respostas para estas perguntas – ou um corpo coerente de novas interrogações –, sem prejuízo de imaginarmos que foi impossível a Malraux, «homem precário», «agnóstico absoluto», «Lázaro sem Cristo», libertar-se dos omnipresentes espectros de um Pascal, de um Kierkegaard ou de um Dostoievski…
Claude Tannery, «A Herança Espiritual de Malraux», Campo das Letras, 2005, 103 páginas