António Rego Chaves
O austríaco Stefan Zweig (1881-1942), que chegou a ser o escritor mais publicado em todo o mundo, foi poeta e tradutor de poetas (Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Verhaeren, Keats, Yeats), dramaturgo («Tersites», «Jeremias», «Volpone»), autor de dezenas de biografias ficcionadas (Casanova, Maria Antonieta, Fouché), ensaios críticos (Erasmo, Montaigne, Kleist, Hölderlin, Balzac, Dickens, Dostoievski, Stendhal, Tolstoi) e romances. Na opinião de um dos seus mais recentes biógrafos, Serge Niémetz, são estes últimos, nomeadamente «Vinte e Quatro Horas da Vida de Uma Mulher», «A Confusão dos Sentimentos» e «Amok» o melhor da sua obra.
Nascido em Viena, filho de um rico industrial judeu, estudante de Literatura, Filosofia e História, apaixonado apologista de um europeísmo espiritual e infatigável viajante (todo o Velho Continente, África, Ásia, Américas), tendo convivido com personalidades como Freud, Rilke, Rodin, Hofmannsthal, Hermann Hesse, Thomas Mann, Joseph Roth, Alfred Döblin, James Joyce, Valéry, Romain Rolland, Roger Martin du Gard, Pirandello, Benedetto Croce ou Máximo Gorki, acabaria por refugiar-se, a partir de 1934, em Londres, como tantos outros judeus fugidos ao nazismo. Em 1941, durante a ditadura do «Estado Novo» de Getúlio Vargas, fixou-se no Brasil (Petrópolis). Aí se suicidaria, com a segunda mulher, Lotte Altmann, a 23 de Fevereiro de 1942, altura em que a vitória das forças do Eixo lhe pareceu inevitável, após o ataque japonês a Pearl Harbor e a queda de Singapura. Serge Niémetz interpreta: «O suicídio, no imaginário de Zweig, representava o fim normal. O que conta na sua obra e na sua maneira de falar da morte é a morte livre. O suicídio é a verdadeira morte natural, aquela por meio da qual se realiza a liberdade do homem. Pela primeira vez ele tomou uma decisão e manteve-a. Esta morte, não a considero digna de heroicização à maneira romântica, à Kleist. É uma morte estóica.»
«Pela primeira vez ele tomou uma decisão e manteve-a»? Eis uma frase que poderá surpreender o leitor. Teria sido o escritor incapaz de coragem física ou moral? «O Mundo de Ontem» (1942, que tardia a denúncia do nazismo!) justifica esta pergunta, embora não lhe responda a preto e branco, com um «sim» ou um «não». A inserção de Stefan Zweig na Áustria e na Europa raramente se encontra isenta dos equívocos próprios dos fanáticos da prudência, dos obcecados pela dúvida, dos aspirantes a conciliadores do inconciliável. Equívoco em relação a Theodor Herzl, o «pai» do sionismo; a Walther Ratheneau, ministro dos Negócios Estrangeiros da República de Weimar, assassinado em 1922 pela extrema-direita; a Romain Rolland, símbolo do pacifismo militante na Grande Guerra; ao «patriotismo» germânico; ao bolchevismo; à Sociedade das Nações; a Richard Strauss («colado», tal como Carl Orff, à pretensa música «ariana»); aos socialistas e comunistas alemães do inicio dos anos trinta; a Adolf Hitler e aos judeus. Equívoco, enfim, perante um antifascismo internacionalista.
Impossível não colocar, neste contexto, a questão crucial posta por Julien Benda na sua polémica obra «A Traição dos Intelectuais» (1927), onde reivindicava para estes o direito e o dever de fugirem a quaisquer tentações temporais, para se refugiarem nos domínios do «eterno» e das «verdades universais». Embora elogiasse o Voltaire do «caso Calas» ou o Zola do «caso Dreyfus», pretendia desviar os intelectuais das paixões políticas, nacionais, racistas, classistas – fossem elas burguesas ou proletárias, belicistas ou pacifistas. A doutrina expendida poderia vir a revelar-se, como alguns argumentaram na época, uma arma suicida perante o fascismo, o nazismo e o estalinismo, ou em outras conjunturas nacionais e internacionais susceptíveis de conduzir à catástrofe países e continentes inteiros. Não seria o silêncio, em tais circunstâncias, demasiado semelhante ao anti-humanitarismo, atitude intolerável por parte dos que deveriam ser os primeiros a alertar os seus concidadãos e o resto do mundo para quaisquer atropelos à dignidade do homem? Não estaria Julien Benda a advogar uma «fuga perante o concreto», essa sim, verdadeira «traição de intelectuais» refugiados em inefáveis – mas humanas, demasiado humanas – «torres de marfim»?
A vida e a trágica morte de Stefan Zweig respondem por si. Envolvendo num manto paradisíaco a Viena de antes da «Grande Guerra», onde se teria implantado a conciliação entre os interesses de todas as classes sociais e o anti-semitismo estaria ausente, recusando olhar senão de esguelha o ovo da serpente surgido com o iníquo Tratado de Versailles, remetendo-se a um ensurdecedor silêncio «apolítico» perante a ascensão do nacional-socialismo, o intelectual que era demitiu-se, em nome da sua «liberdade interior», do dever de avisar a tempo e horas os seus contemporâneos, nacionais ou estrangeiros, dos riscos que corriam – e, nessa exacta medida, a todos traiu. O seu elogio de Montaigne (1533-1592), escrito poucos meses antes de morrer, só reforça esta convicção: «Como salvaguardar a minha alma mais profunda e a sua matéria, que não pertence senão a mim, o meu corpo, a minha saúde, os meus pensamentos, os meus sentimentos, do perigo de serem sacrificados à loucura dos outros, a interesses que não são os meus? Foi a esta questão e só a ela que Montaigne consagrou a sua vida e a sua força. (…) E essa procura que empreendeu para salvar a sua liberdade, num momento de servilismo universal perante as ideologias e os partidos, torna-o hoje mais fraternalmente próximo de nós do que qualquer outro artista.» A patética identificação de Stefan Zweig com o seu biografado é claramente injusta para com um pensador que só em 1571 tentou retirar-se da vida política – aliás, sem êxito –, depois de estar «farto» de ocupar o seu tempo em querelas no Parlamento de Bordéus e em missões diplomáticas ou cargos públicos, alguns deles por incumbência real. Honra seja feita ao «seigneur» de Montaigne…
Stefan Zweig, «O Mundo de Ontem – Recordações de um Europeu», Assírio & Alvim, 2005, 495 páginas