Diderot picaresco
António Rego Chaves
Contemporâneo de Montesquieu, de Voltaire e de Rousseau, Denis Diderot (1713-1784) será sempre lembrado como o grande criador e principal artífice da «Encyclopédie», o gigantesco empreendimento que levou a cabo entre 1750 e 1766, por vezes contra tudo e contra (quase) todos. Voltaire, com quem teve relações difíceis e nem sempre marcadas pela estima mútua, desta vez generoso, reconhecer-lhe-ia eloquentemente o imenso mérito: «Tudo se encontra na esfera de actividade do seu génio; passa das alturas da metafísica ao ofício de um tecelão, e daí caminha para o teatro. Que pena que um génio como o seu encontre tão estúpidos entraves e que um bando de galos da Índia tenha conseguido agrilhoar uma águia!»
Mas Voltaire é deísta e homem disposto a compromissos, Diderot ateu confesso e muito pouco dado a transigir ou negociar com os seus adversários e inimigos. Ao contrário de d’Alembert, que abandonará a empresa, prosseguirá a sua luta até ao fim, ou seja, até à tremenda e gloriosa vitória final sobre «o infame» que foi a publicação integral do «Dictionnaire raisonné». Ficará então livre para escrever uma grande parte da sua obra literária, incluindo este «Jacques le fataliste et son maître».
O romance só será publicado em 1796, depois da morte do seu autor e da Revolução Francesa. Trata-se de um longo diálogo entre o criado Jacques e o seu amo, recheado de toda a espécie de narrativas, aventuras e reflexões, algumas delas de forte pendor anticlerical e antiteísta, acerca da condição humana e da sociedade francesa do século XVIII. Quanto ao fatalismo da personagem que dá o título ao romance, é enunciado desde o início: «tudo o que nos acontece de bem e de mal cá em baixo está escrito lá em cima».
É tomando como ponto de partida – e também de chegada – este princípio inabalável que Jacques avalia tudo o que vai acontecendo à sua volta e aos humanos: convida-nos e convida-se a si próprio à resignação, não ficando longe do que nos proporia Diderot, o seu «inventor», apesar da sua dura experiência de intensos combates contra a adversidade. O materialismo e o determinismo professados pelo autor impedem-no de considerar que detém qualquer poder de controlar as forças que comandam os acontecimentos que o afectam e traçam o seu «destino». O homem, segundo pensa, não é livre de escolher a sua própria vida e, na melhor das hipóteses, poderá tomar consciência dos constrangimentos que impedem o exercício da sua liberdade, acatando os ditames que Jacques considera vindos do «alto».
De resto, como o criado diz ao seu amo, «a vida passa-se em equívocos. Há os equívocos de amor, os equívocos de amizade, os equívocos de política, de finanças, de igreja, de magistratura, de comércio, de mulheres, de maridos». Histórias de fornicações povoam este livro, que muito deve a «The Life and Opinions of Tristram Shandy», de Laurence Sterne, e é por vezes picaresco, roçando o pormenor pornográfico; mas Diderot sabe bem justificar-se, socorrendo-se da sua extraordinária erudição e fazendo-nos raciocinar e escapar a qualquer recriminação mais ou menos consciente:
«Como é que um homem de senso, de bons costumes, com prosápias de filosofia, pode divertir-se a debitar contos desta obscenidade? … Em primeiro lugar, leitor, não são contos, é uma história, e não me sinto mais culpado, e até talvez menos, quando escrevo as tolices de Jacques que Suetónio quando nos transmite os deboches de Tibério. No entanto, vós ledes Suetónio e não lhe fazeis qualquer censura. Porque não franzis o sobrolho a Catulo, a Marcial, a Horácio, a Juvenal, a Petrónio, a La Fontaine e a tantos outros? Porque não dizeis ao estóico Séneca: ‘Que necessidade temos nós da crápula do vosso escravo nos espelhos côncavos? [Segundo Séneca, Hostius Quadra (que não era escravo mas homem de fortuna que morreu assassinado pelos seus escravos) servia-se de um espelho côncavo de aumentar para condimentar as suas práticas homossexuais]. Porque tendes indulgência apenas para com os mortos? Se reflectísseis um pouco nessa parcialidade, veríeis que ela provém de um qualquer princípio vicioso. Se sois inocente, não me lereis; se estais corrompido, ler-me-eis sem quaisquer consequências. E, além disso, se o que aqui vos digo vos não satisfaz, abri o prefácio de Jean-Baptiste Rousseau e lá encontrareis a minha apologia. [Jean-Baptiste Rousseau (1671-1741), que se exilara por ter escrito versos obscenos e caluniosos para vários escritores, apresentou a sua própria defesa no prefácio das suas «Oeuvres Diverses»]. Quem se atreve a acusar Voltaire por ter composto ‘La Pucelle’? [«La Pucelle d’Orléans», célebre poema herói-cómico de Voltaire]. Ninguém. Tendes então duas balanças para as acções dos homens? ‘Mas, dizeis vós, ‘La Pucelle’ de Voltaire é uma obra-prima. – Tanto pior, porque ainda será mais lida. – E o vosso ‘Jacques’ não passa de uma insípida compilação de factos, uns reais, outros imaginados, escritos sem graça e distribuídos sem ordem. – Tanto melhor, assim o meu ‘Jacques’ será menos lido.’ Seja qual for o lado para que vos volteis, não tendes razão. Se a minha obra é boa, dar-vos-á prazer; se é má, não fará mal nenhum. Não há livro mais inocente que um mau livro. Divirto-me a escrever sob nomes de empréstimo as tolices que cometeis; as vossas tolices fazem-me rir, o meu escrito irrita-vos. Leitor, para vos falar francamente, acho que o pior de nós dois não sou eu. Como eu ficaria satisfeito se me fosse tão fácil preservar-me das vossas torpezas como vós vos preservais do tédio ou do perigo da minha obra! Vis hipócritas, deixai-me em paz! F…. como asnos sem albarda; mas permiti que vos diga que não me f….. a paciência; deixo-vos a acção, deixai-me vós a palavra.»
A tradução de Pedro Tamen é «impecável», como anotou Eduardo Prado Coelho no tão divertido quanto esclarecido prefácio que abre esta edição.
Denis Diderot, «Jacques o Fatalista e o seu Amo», Tinta-da-China, MMIX, 295 páginas