António Rego Chaves
A cada um seu Cioran? Ao lermos este dossier do mensário «Le Magazine Littéraire», elaborado por ocasião do centenário do nascimento do filósofo romeno, dir-se-ia que sim, ou seja, que cada um de nós poderá interpretá-lo à sua maneira, escolhendo o que lhe aprouver, rejeitando o remanescente. O que alguns teólogos fazem em relação a textos controversos da Bíblia…
Em boa verdade, aquilo que se passa com Cioran (1911- 1995) é um pouco o que ocorre com qualquer outro autor de aforismos responsável por uma obra extensa: não escasseiam contradições no que fez publicar e, por isso, proliferam as interpretações divergentes dos seus escritos. Pessimismo ou realismo, niilismo ou misticismo, egotismo ou humanismo, tudo, consoante os analistas, se pode encontrar na sua grandiosa meditação. No limite, cada leitor só lá descobrirá o que procura – aliás, o próprio Cioran, que foi um confesso leitor compulsivo, terá feito o mesmo em relação aos textos que mais frequentou. Leiam-se os seus «Exercícios de Admiração»: Joseph de Maistre, Paul Valéry, Samuel Beckett, Saint-John Perse, Mircea Eliade, Roger Caillois, Henri Michaux, Benjamin Fondane, Jorge Luis Borges, Maria Zambrano, Otto Weininger, Scott Fitzgerald, Guido Ceronetti – a todos eles lança um olhar pessoal, intenso, único. Podemos – e devemos – procurar fazer o mesmo ao lermos Emil Cioran? Porque não? Tendo presente uma advertência feita pelo próprio, para memória futura: «São menos os autores que lemos muito que contam para nós do que aqueles em que não deixámos de pensar, que estiveram presentes nos nossos momentos essenciais e que, devido ao seu martírio, nos ajudaram a suportar o nosso.»
Assinalando também o centenário de Cioran, Fernando Savater, seu amigo, tradutor e estudioso, escolhia há semanas algumas «garradas» [zarpazos] do «filósofo uivador» sobre temas como a Humanidade, Deus, a Morte, A Amizade, a Literatura, o Relativismo, a Filosofia, o Povo, a Religiosidade, o Tempo. A selecção seria decerto criteriosa, mas tão válida quanto outras para transmitir o pensamento do moralista – aliás bem mais vocacionado para equacionar problemas do que para nos propor soluções. Como frisa Patrice Bollon, «o aforismo, mais do que qualquer outra forma, autorizava-o a dar conta dos seus humores em mudança sem procurar superá-los».
Evidenciando um distante desprezo pela filosofia universitária, que aliás lhe fora incutido em jovem pelo seu mestre Nea Ionesco (nada em comum, senão o apelido, com o autor d’«O Rinoceronte»), Cioran assumia-se como um homem da dúvida: «Com certezas, não há estilo: a preocupação de bem-dizer é apanágio dos que não podem deixar-se adormecer numa fé.» No entanto, a sua juventude, como se sabe, não ficara isenta de fanatismos, pois aderira de alma e coração à ideologia do nazismo e à Guarda de Ferro, um movimento romeno xenófobo e dito «anti-semita», isto é, anti-judaico.
Tornar-se-ia, depois, num homem «sem posição», num «existencialista da recusa», «sem muletas», «sem Deus», «sem amo», releva o filósofo alemão Peter Sloterdjik, o autor da «Crítica da Razão Cínica», que comenta: «Os livros de Cioran eram, para um número indeterminado de leitores, uma profilaxia eficaz do suicídio – diz-se que as conversas com ele produziam o memo efeito. Aqueles que procuravam um conselho puderam adivinhar de que forma ele tinha descoberto a maneira mais sã de ser incurável.»
Ingrid Astier destaca o papel desempenhado desde sempre pela vigília nocturna no pensamento do filósofo: «A insónia alimenta em Cioran o seu ‘prazer negativo e perverso da recusa’. O velador volta as costas à ordem do mundo e encontra a solidão, dessolidariza-se do pensamento comum. Na vertente intelectual, a noite semeia a dúvida. Na vertente existencial, inocula o desespero.» (…) «Se ‘o sono faz esquecer o drama da vida, as suas complicações, as suas obsessões, as insónias engendram, pelo contrário, o sentimento da agonia, uma tristeza incurável, o desespero’.»
Eis a reivindicação da noite, de infindáveis «noites brancas», por Cioran: «O preconceito vergonhoso segundo o qual a luz é indispensável ao conhecimento deve ser rejeitado de uma vez por todas. Porquê recusar admitir que as revelações da noite, isentas de diferenças nítidas e de individualizações categóricas, são muito mais fecundas do que as do dia? A metafísica autêntica é produto de uma meditação na obscuridade, quando já não estamos seguros de nada, quando já não nos podemos agarrar a nada.»
«O horizonte afectivo do pensamento de Cioran é a melancolia. Uma multidão de ideias próximas, que são outros tantos sinónimos, irrompe nos seus escritos para designar sofrimentos inauditos, que nenhuma medicina é capa de apaziguar. Ele suporta, passo a passo, os pavores do tédio e da depressão [cafard], da acédia e da preguiça, do ódio e do rancor, do desespero e da angústia, do remorso e da tristeza…» – adianta Constantin Zaharia. E o próprio Cioran explicita: «Donde pode derivar esta tristeza inumana? Vejo a causa dela num duplo desastre: metafísico e fisiológico.»
Simona Mondrenau, a autora d’«O Deus Paradoxal de Cioran», evoca um aforismo do filósofo: «Aquele que não pensa em Deus fica estrangeiro a si próprio. Porque a única via do conhecimento de si passa por Deus, e a História Universal não é senão uma descrição das formas que Ele assumiu.» Recorre a místicos como Santa Teresa d’Ávila e São João da Cruz, a Mestre Eckhart, aos gnósticos, ao hinduísmo, ao budismo, todos «visitados» pelo romeno em diferentes períodos da sua existência. Não era preciso ir tão longe. Emil Cioran sabia do que falava e sobretudo de quem falava quando, vivendo sem descanso a dúvida, experimentou na pele a trágica persistência de uma única certeza inabalável: «Nem este mundo, nem o outro, nem a felicidade são para o ser abandonado à dúvida.»
Le Magazine Littéraire, «Cioran – Désespoir, mode d’emploi», Maio de 2011, 98 páginas