António Rego Chaves
Escrito entre 1937 e 1938 – altura em que não se extinguira ainda em França o clima revolucionário da Frente Popular –, e publicado em 1939 pelas Éditions Sociales, o «Nietzsche» de Henri Lefebvre (1901-1991) espelha uma época de intensos confrontos ideológicos. Em primeiro lugar, o autor, marxista heterodoxo mas membro do PCF desde 1928 a 1958, era considerado, na fórmula lapidar de Michel Trébitsch, que prefacia a edição de 2003, «demasiado filósofo pelo Partido Comunista e demasiado comunista pelos filósofos» – e por isso mesmo se tornou vítima de uma dupla marginalização, política e intelectual. Depois, Georges Politzer, autor da notável «Crítica dos Fundamentos da Psicologia», implacável crítico do pensamento «burguês» de Bergson, professor de Filosofia da «Université Ouvrière» e destacado intelectual do PCF, contesta a interpretação do pensamento de Nietzsche veiculada por Lefebvre, tal como os seus conceitos de racionalismo e irracionalismo. Finalmente, a obra será apreendida no início de 1940, em plena II Guerra Mundial, na sequência da supressão de todas as edições comunistas pelo governo de Edouard Daladier.
Arrancar Nietzsche aos hitlerianos é a finalidade que se propõe este ensaio sobre o grande pensador alemão. Aos nietzschianos fascistas como Alfred Rosenberg, autor de «O Mito do Século XX», contrapõe Henri Lefebvre o não menos nietzschiano Thomas Mann da «Advertência à Europa». No contexto da recepção da obra do poeta-filósofo em França, desde a extrema-esquerda soreliana à extrema-direita da «Action Française», sem esquecer Georges Bataille e Drieu La Rochelle, a dimensão política desta polémica adquire todo o seu sentido e alcance históricos.
É hoje bem conhecido o papel desempenhado por Élisabeth Förster Nietzsche no processo de apropriação pelos nazis do pensamento do autor de «Assim Falava Zaratustra». Nacionalista e racista, a «pata anti-semita e vingativa», como lhe chamou o próprio irmão, ousou mutilar, falsificar e manipular a seu bel-prazer os aforismos de «A Vontade de Poder». Não contente com tais atrocidades, fará publicar uma biografia de Nietzsche onde este é apresentado como nacionalista, militarista e imperialista, além de homem piedoso, todo ele entregue ao amor a Cristo. E, para culminar tão repugnante quadro de desonestidade e oportunismo, nem se esquecerá de tecer loas a Hitler e Mussolini.
Na época em que o livro de Lefebvre foi escrito, Lukács não publicou ainda «A Destruição da Razão», mas já começou a estigmatizar Nietzsche como «um precursor da estética fascista» e fundador do irracionalismo do período imperialista; Julien Benda, em «A Traição dos Intelectuais», aproximou-o de Maurras, Barrès e Sorel; quanto a Drieu La Rochelle, deu à estampa um provocador «Nietzsche contra Marx», que integrará no seu «Socialismo Fascista». E eis que esta voz de «outsider» se ergue para nos garantir com veemência, contra ventos e marés, que o marxismo não é uma doutrina acabada e que, «quando os problemas humanos forem finalmente abordados numa comunidade humana liberta daquilo que a oprime, muitas páginas de Nietzsche readquirirão um sentido válido e profundo.» Não é difícil imaginar que a maioria dos altos responsáveis pelo PCF – mas não Maurice Thorez, honra lhe seja feita –, está longe de aprovar tal «atrevimento», susceptível de pôr em causa a verdade «eterna» das interpretações leninistas e estalinistas do materialismo histórico…
Henri Lefebvre prosseguirá no seu caminho solitário, tão alheio à filosofia universitária como ao chamado «socialismo científico», sempre atento ao Marx dos «Manuscritos de 1844» e publicando uma inovadora e magistral «Crítica da Vida Quotidiana» (três volumes editados em 1947, 1962 e 1981), por muitos considerada a mais importante das suas obras. Escreve, já no final de «Nietzsche»: «A grande cultura do futuro deve integrar o cósmico no humano, o instinto na consciência. Ela será a cultura do homem total. Ela supõe uma ordem interior e exterior, uma hierarquia dos valores e das potencialidades humanas na sua unidade.» Cremos que nem o poeta de «Zaratustra» nem o jovem Marx dos «Manuscritos» desdenhariam de subscrever palavra por palavra tão ambiciosa proposta de revolução cultural.
Henri Lefebvre, «Nietzsche», Éditions Syllepse, 2003, 208 pag., 22 €