Obama, «divina surpresa» (O «egoísmo racional» de Ayn Rand)

António Rego Chaves

As reformas do sistema de saúde pública feitas aprovar pelo Presidente Barack Obama provocaram, como foi noticiado, numerosas reacções de protesto nos Estados Unidos. Decerto nenhumas foram tão «filosóficas» como as dos seguidores de Ayn Rand (1905-1982) – entre os quais já se contaram homens como Ronald Reagan e Alan Greenspan, que durante mais de 18 anos dirigiu o Banco Central americano (Fed). Confessara este: «Ayn Rand mostrou-me que o capitalismo não é apenas eficaz, mas que é moral.» Por isso se terá revelado sempre favorável a um Estado débil que limitasse quanto possível as receitas, as despesas – e a segurança social.

Quem foi esta brilhante romancista, ídolo de milhões de estado-unidenses desde a publicação de «The Fountainhead» (1943) e «Atlas Shrugged» (1957), responsável pela medíocre filosofia a que chamou «objectivismo»?

Nascida na Rússia, emigra para os EUA em 1926, iniciando depois a sua carreira de ficcionista, com «We the Living» (1936) e «Anthem» (1938). Só a partir de 1960 se impõe no país de adopção como propagandista do «objectivismo». A obra de que nos ocupamos, «The Virtue of Selfishness», reúne sete ensaios de cariz político, escritos entre 1961 e 1964, com os seguintes títulos: «A ética objectivista», «A ética das urgências», «A ética colectivizada», «Os direitos do homem», «Os ‘direitos’ colectivizados», «O financiamento do governo numa sociedade livre» e «O racismo».

De alguma forma, o «objectivismo» teoriza as virtudes dos principais «heróis» saídos da pena de Ayn Rand, o arquitecto Howard Roark (ao que parece inspirado na figura de Frank Lloyd Wright) e o cientista John Galt – dois «self- made men» que encarnam as qualidades preferidas pela autora, pois são criadores, individualistas, solitários (contrastando com os «parasitas sociais» e os «espíritos gregários») e adeptos de uma sociedade regida pelas «intocáveis» leis do mercado. O seu ódio ao estatismo e ao colectivismo levá-la-ia longe no caminho da abjecção, dado que, depois de se ter oposto ao «New Deal» de Franklin Delano Roosevelt, denunciou, durante o macarthismo, vários intelectuais que considerava culpados do «crime» que se convencionou então chamar «actividades anti-americanas».

Para um leitor de Herbert Spencer (1820-1903), bem conhecido como representante do «darwinismo social», o «objectivismo» pouco trará de interessante: nele encontramos idêntico desrespeito pelo voto das maiorias, a reivindicação do direito de ignorar o Estado, a recusa da solidariedade. Mas Ayn Rand não se apoiava explicitamente no filósofo inglês, tal como não considerava o monetarista Milton Friedman neoliberal q. b.: «Não é favorável ao capitalismo. É um miserável eclético» – chegou a afirmar.

O «Ayn Rand Institute» ainda hoje difunde a propaganda «objectivista», promovendo a economia do «laissez faire», o individualismo e o exercício da razão como antídotos das iniciativas estatais intervencionistas, das políticas ambientais e do multiculturalismo. Escreveu o antropólogo François Flahaut, na sua obra «Le Crépuscule de Prométhée»: «A ideologia de Ayn Rand dirige-se em primeiro lugar aos ‘dominantes’. Conforta-os com a ideia lisonjeira que têm de si próprios e permite-lhes fazer passar para segundo plano aquilo que são na realidade: pessoas para quem é essencial pertencer a redes poderosas e que se empenham em nelas ocupar uma posição. Mas espalha-se também com êxito – é a sua grande força – entre os que se situam em posições mais modestas. Estes estão, sem dúvida, mais isolados, o que é para eles uma causa de dificuldades, mas o modelo que lhes propõem [Howard] Roark ou [John] Galt oferece-lhes, na medida em que se identificam com ele, uma compensação imaginária e uma fonte de auto-estima. Ele permite-lhes orgulhar-se daquilo que, na realidade, os enfraquece. Como a fé no indivíduo se apoia no exemplo dos que têm êxito, o capital social de que estes beneficiam é silenciado, a fim de realçar o seu valor pessoal. Para os que se situam no nível mais baixo da escala social, os revezes são imputados à falta de qualidades pessoais.»

Poucas afirmações da ideóloga nos farão sequer esboçar um sorriso, mas as que se seguem, proferidas de início em Boston e repetidas em Colúmbia, respectivamente em 1961 e 1962, não poderão deixar de suscitar em alguns de nós uma sarcástica hilaridade: «Qualquer movimento que pretenda submeter um país, qualquer ditadura ou potencial ditadura, tem necessidade de um grupo minoritário como bode expiatório, a quem fazer endossar a responsabilidade dos problemas do país, e para justificar que lhe concedam poderes ditatoriais. Na Rússia soviética, o bode expiatório foi a burguesia; na Alemanha nazi, o povo judeu; na América são os homens de negócios.»

Não admira, pois, que num país onde – ao contrário do que se passaria na Grã-Bretanha, em França, na Alemanha, ou mesmo em Portugal – tais teses foram aplaudidas por muitos milhões de pessoas, nem Harry Truman, nem Richard Nixon, nem Bill Clinton tenham conseguido fazer aprovar uma reforma do sistema de saúde contra a pressão corporativa exercida pelos médicos e pelas poderosas companhias de seguros. Tendo presente que, de acordo com um estudo realizado em 1991 pela Biblioteca do Congresso dos EUA, «Atlas Shrugged» foi o livro que mais influenciou os norte-americanos depois da Bíblia, a reforma de Obama constituiu – para usar uma expressão atribuída a Maurras quando o marechal Pétain ocupou o Poder – uma «divina surpresa», pois traduziu a vitória da solidariedade social implícita na concepção do Estado-Providência sobre o «egoísmo racional» advogado por Ayn Rand. Não nos espanta que certos norte-americanos tivessem chamado «comunista» ao seu Presidente: a escritora nunca protegeria todos aqueles que, nas suas palavras, «comem, dormem e mastigam impotentes as ideias que outros põem nos seus cérebros» – desde que fossem pobres. Limitar-se-ia a isentar de impostos, tanto quanto lhe fosse possível, os seus empreendedores e produtivos homens de negócios.

Ayn Rand, «La Vertu d’égoïsme», Les Belles Lettres, 1993, 225 páginas