António Rego Chaves
Personagem da «Odisseia» de Homero (VIII século a.C.), Penélope não tem cessado de intrigar escritores, dramaturgos e compositores musicais. Vinte anos de «tediosa» fidelidade a um marido ausente, é «obra» – «obra» que, aliás, nem todos encararam sem algum cepticismo. Tecendo a mortalha de Laertes, pai de Ulisses, enfrentando as ambições de Telémaco, o filho do casal, esquivando-se aos pretendentes à sua mão e aos seus haveres, a filha de Icário (e não Ícaro, como se escreve repetidas vezes nesta tradução, a par de Nautica em vez de Nausícaa, de muitas gralhas e de lamentáveis negligências de linguagem) inspirará, entre outros, Ovídio, D’Annunzio, Monteverdi, Fauré, Joyce, Giono ou Moravia.
Para Joyce (1922), no «Ulisses», Penélope/Molly não passa de uma «meretriz». Giono, com «Naissance de l’Odyssée» (1938) e Moravia (1954) em «O Desprezo», vertido para português em 1955, pela mão da Editora Ulisseia, também escandalizaram: o francês apresentar-nos-ia uma Penélope infiel, atraída pelo atlético Antínoo, o primeiro a ser morto por Ulisses após o seu regresso a Ítaca, uma vez terminada há muito a Guerra de Tróia e na sequência das suas infidelidades com as mulheres que ia encontrando em cada porto, a última das quais teria sido a insaciável Circe; quanto ao italiano, ter-se-ia passado algo de bem mais complexo, pois Ulisses, já antes de partir para a Guerra de Tróia, era desprezado pela esposa, que lhe era fiel mas deixara de o amar, porque ele fingia não ver os pretendentes, aceitando os seus presentes e aproveitando-se das vantagens da situação. Segundo o crítico literário Pedro de Moura e Sá, que prefaciou a edição portuguesa, «Ulisses vagueia durante dez anos porque o inconsciente cria todos os falsos motivos para não voltar que envolvem, perante a sua própria consciência, o sentido de falta, de fraqueza, de insuficiência do carácter. Quando, por fim, regressa, encontra, instalados na sua própria casa, os pretendentes agitando-se em torno de Penélope, oferecendo-lhe, já claramente, amor e casamento. Então Ulisses compreende que só tem um processo de reconquistar o amor da esposa: – chama do fundo de si, como um exército de reserva, toda a sua energia, toda a sua brutalidade, e surge na ‘Odisseia’ o sanguinolento massacre dos pretendentes, tão contraditório com o carácter do herói de Homero.»
Neste contexto se edita agora «A Odisseia de Penélope», obra da escritora feminista canadiana Margaret Atwood (autora de vários livros já traduzidos para português, como «A Mulher Comestível», «Crónica de uma Serva» e «Criminosa ou Inocente?»), que recorreu à «Odisseia», ao Robert Graves de «The Greek Myths» e aos «Hinos Homéricos» (650-400 a. C.) para se documentar. A abrir, duas citações, das quais transcrevemos uma, por ser a que mais importa à abordagem que a romancista fará do tema que se propôs tratar: «pegou num calabre, que havia servido no navio da proa azul, arremessou rapidamente uma ponta a uma alta coluna do pórtico e atirou a outra em volta da torre, de forma que os seus pés não tocassem o chão. Como quando tordos de longas asas ou pombos são presos numa armadilha…de maneira que as cabeças das mulheres depressa ficaram suspensas em fila, com os laços corrediços em volta do pescoço, para lhes dar o fim mais atroz. Por uns instantes, os pés contorceram-se-lhes, mas não por muito tempo.» («Odisseia», Canto 22).
Margaret Atwood vai basear-se neste episódio – o enforcamento «das doze servas que andavam a dormir com os pretendentes» – para lançar «duas perguntas que devemos fazer a nós mesmos quando lemos a ‘Odisseia’: que levou ao enforcamento das raparigas e que tramava realmente Penélope?» Ao tecer e desmanchar a mortalha de Laertes, escolhe doze das suas servas pessoais, as mais novas, porque tinham estado consigo toda a vida, para a ajudarem na tarefa da metódica destruição, noite fóra, do trabalho que produzira durante o dia. Mas uma delas trai o segredo do seu interminável labor. Confessa Penélope: «Fui eu a culpada do meu segredo ter sido traído, falando com rigor. Disse às minhas jovens servas – as mais amorosas, as mais fascinantes – que andassem em volta dos pretendentes e os espiassem, usando todas as artes de sedução que pudessem congeminar.» (…) «O plano desembocou em desgosto. Várias das servas foram infelizmente violadas, outras seduzidas, ou de tal forma encurraladas que resolveram que era melhor ceder do que resistir.» (…) «Algumas delas apaixonaram-se pelos homens que as tinham usado tão malevolamente.»
Exterminados os pretendentes, enforcadas as doze servas, Penélope interroga-se: será que cometeu um erro ao não pôr Euricleia, a velha ama de Ulisses, a par da sua conivência com as jovens, motivo pelo qual esta, ressentida, se vingara denunciando-as e conduzindo-as à morte? Mas as vítimas têm uma outra explicação: «Se calhar a nossa violação e subsequente enforcamento representam o derrube de um culto matrilinear da Lua por um incipiente grupo usurpador patriarcal de bárbaros que reverenciavam um deus-pai. O chefe destes, Ulisses, teria então afirmado a sua realeza desposando a Suma Sacerdotisa do nosso culto, Penélope.» Negando que «esta teoria seja uma mera conversa feminista infundada», brandindo o temível fantasma do «pénis patriarcal», classificando o «divino» Ulisses e seu filho Telémaco como «dois galos encarregados da galinha da casa», as servas, Penélope e Atwood, claro está, mergulham sem reservas no abismo do anacronismo histórico. Nem mesmo Helena, «a mulher mais bela do Mundo» e esposa de Menelau raptada por Páris, por quem os gregos combateram durante dez anos, teria tido algo a ver com a Guerra de Tróia. «Foi tudo por causa das rotas comerciais. É que os especialistas andam a dizer» – sugere, no mundo de Hades, Penélope. «Quod erat demonstrandum», como se pretende a todo o custo demonstrar na lógica simplista de algumas escolásticas feministas, as mulheres são as únicas vítimas incontestáveis do processo histórico...
Margaret Atwood, «A Odisseia de Penélope», Editorial Teorema, 2006, 202 páginas