António Rego Chaves
Dizia Kant que a sua época era a da crítica, a que tudo deveria submeter-se. E explicitava: «Em vão pretendem escapar-lhe a religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, que provocariam nesse caso motivadas suspeitas e não poderiam exigir o sincero respeito que a razão apenas concede ao que pode enfrentar o seu público e livre exame.» Consagrando a sua atenção ao «discurso crítico» europeu entre os séculos XVI e uma ínfima parte do século XIX, no primeiro tomo de uma obra muito ambiciosa, algo confusa e debilmente estruturada que intitula «Portugal Extemporâneo», embora do País só se trate no segundo tomo e apenas no que ao século XX se refere, Carlos Leone oferece-nos um estudo deveras interessante, não obstante as evidentes limitações acima apontadas.
Sustenta o autor: «O ‘discurso crítico’ que caracterizamos como intervenção intelectual pública, na Europa dos séculos XVI a XIX, em defesa da instituição social de um conjunto de liberdades modernas, é o mesmo ‘discurso crítico’ que veremos desenvolver-se em Portugal ao longo do século XX.» E explicita: «’Portugal Extemporâneo’ significa que Portugal permaneceu fora do processo de modernização da Europa Ocidental quando este decorreu (…) e só fez o seu próprio e isolado caminho tardio para a modernidade no século XX.» Atestada assim a debilidade mental do País, como se cá não tivessem chegado o Humanismo e o Renascimento, o Iluminismo, o Liberalismo e o Romantismo, que se espera? Talvez que seja demonstrado o que se afirma. Nada disso. Trata-se de axiomas – não de teoremas. Quem pode demonstrar o indemonstrável?
Sem patrioteirismos: poder-se-á em rigor afirmar – como faz o autor, na esteira de José Gil e sem quaisquer matizes – que «o medo seria o elemento valorativo que distinguiria o esboço de explicação do discurso crítico português contemporâneo de qualquer outro exercício do género»? Será que a Espanha de Franco, a Itália de Mussolini, a França de Pétain, a Alemanha de Hitler (para não ir mais longe) não viveram nada semelhante – o medo de publicar, o medo de escrever, mesmo o medo de pensar, sem sequer se explicitar o que se pensa? Liberdade de expressão? Que terá sido isso para tantos senão gorada expectativa de falar, grito abafado, temor de revelar factos, dizer a verdade, só a verdade, nada mais do que a verdade?
Podemos, agora, prosseguir. Os grandes vultos estrangeiros da crítica apresentados por Carlos Leone, que foram perdendo o medo e que, mesmo, venceram o medo – ou nem isso, como se tornou evidente com o grande Erasmo –, foram sobretudo Montaigne e o seu amigo La Boétie, Espinosa, Hobbes, Shaftesbury, Montesquieu, David Hume, Pierre Bayle, Voltaire, D’Alembert, Diderot, Condorcet, Mary Woolstonecraft, Rousseau, Kant, Fichte, Schleiermacher, Benjamin Constant. O autor pára neste último, nascido em 1767 e falecido em 1830. Quanto a muitos outros, mesmo do século XIX – gigantes da crítica como Marx, Proudhon, Renan, esses brilham pela ausência nesta abortada história do discurso oitocentista.
Max Horkheimer, citado no primeiro volume da obra: «Não há humanismo sem tomada de posição clara sobre os problemas históricos da sua época; ele não pode existir sob a forma de um simples reconhecimento de si mesmo. O humanismo do passado consistia na crítica do regime feudal e da sua hierarquia, que se tinham tornado num entrave ao desenvolvimento do homem. O humanismo contemporâneo reside na crítica dos modos de vida pelos quais a humanidade de hoje corre para a sua perdição, e no esforço de os transformar racionalmente.» Poucos disseram tão bem algo que fosse válido para tantos séculos. Talvez ainda melhor, La Boétie (1530-1563) falou do passado, do presente e do futuro, ao pôr em evidência, no seu «Discurso sobre a Servidão Voluntária» que, se o povo escravo quiser, as suas grilhetas cairão. Não se trata de um apelo à revolução, mas da simples enunciação dos efeitos de uma causa: o mensageiro, sabe-se, não deve ser culpabilizado pela ocorrência dos factos que anuncia ou ousa prever…
«Extemporâneo», segundo reza o «Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa», «é algo que ocorre ou se manifesta fora ou além do tempo apropriado ou desejável». Um tal conceito apela, a nosso ver, para o de «contextualizar», ou seja, segundo a Academia das Ciências de Lisboa, «inserir ou enquadrar no conjunto de factos ou circunstâncias com que se relaciona, que o rodeiam ou tornam lógico». Lido atentamente este primeiro volume do «Portugal Extemporâneo» de Carlos Leone, verificamos que o autor não cuidou de contextualizar a vida e a obra de pensadores que viveram em tempos e espaços tão diversos como os acima referidos Erasmo, Montaigne, La Boétie, Espinosa, Hobbes, Shaftesbury, Montesquieu, David Hume, Pierre Bayle, Voltaire, D’Alembert, Diderot, Condorcet, Mary Woolstonecraft, Rousseau, Kant, Fichte, Schleiermacher e Benjamin Constant. O indesculpável em relação a estes eminentes estrangeiros será porventura desculpável, para um leitor português, no que diz respeito a destacados «extemporâneos» como António Sérgio, Bento de Jesus Caraça, Magalhães Godinho, Magalhães-Vilhena ou Eduardo Lourenço. Mas perguntamo-nos quantos dos nossos contemporâneos nascidos nos três ou quatro últimos decénios saberão o que tais individualidades significaram para o País. E, ao fazermos tal interrogação, estamos certos de que estes eminentes portugueses, apesar dos riscos que correram, pouco puderam contribuir para a conquista das liberdades de que hoje desfrutamos – incluindo a de não ter de vencer, como eles venceram, ainda que por vezes no exílio, o medo que a muitos tolheu a palavra. Veremos a seguir o que foi o discurso crítico no Portugal do século XX.
Carlos Leone, «Portugal Extemporâneo – História das Ideias do Discurso Crítico Moderno (Séculos XVI-XIX)», Volume I, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, 236 páginas