António Rego Chaves
Dez cartas do iluminista Luís António Verney (apenas duas não foram escritas em italiano, sendo as restantes pela primeira vez traduzidas para português) são publicadas neste volume prefaciado e anotado por Ana Lúcia Curado e Manuel Curado. Louvemos a iniciativa – e anotemos os temas abordados pelo Barbadinho: «Sobre as disputas literárias», «Diagnóstico cultural da vida intelectual dos portugueses», «Sobre a perseguição jesuíta», «Sobre a reforma da Inquisição e outras felicidades futuras», «Sobre as cruzes do Papa e do Rei de Portugal», «Sobre os deveres do Príncipe», «Sobre a política honrada», «Sobre o apoio à edição de livros», «Sobre as loucuras do século» e «Sobre a física dos Jesuítas». Completam a obra «Pensamentos úteis ao bem público» e «Pensamentos sobre coisas úteis e necessárias».
O «Diagnóstico cultural da vida intelectual dos portugueses» constitui, talvez, o mais interessante texto do livro. Nele, o estrangeirado, «mijando» para potenciais censores, aconselha ao destinatário da carta a leitura de Cícero, Cornélio Nepos, Tito Lívio, Júlio César e Terêncio, o estudo das Matemáticas e da Filosofia Moderna, da Teologia, da Ética e do Direito Natural, da História Eclesiástica e Civil, da História Filosófica e da História da Teologia, da Poesia, Retórica, Oratória e História, bem como da Lógica Moderna, atacando de frente o «Seiscentismo puro como sua mãe o pariu». Conclui: «A comunicação com os homens doutos das outras nações cultas é a que abre os olhos do entendimento, introduz o bom gosto e o fortifica. Sempre reparei que alguns homens doutos que tem produzido a nossa nação floresceram comummente no século XVI em que era costume, ou virem cá aprender, ou irem lá ensinar e comunicar as luzes das outras nações. Quando cessou este costume, acabou-se a nossa glória. Mas os que mais ilustraram a nossa pátria foram os que cá estudaram fora.» Recorda depois quinhentistas como Jerónimo Osório, Aquiles Estaço, António de Gouveia, André de Resende ou Pedro da Fonseca, para assinalar que conhece «a miséria da nossa nação» e sublinhar: «São tão poucos os autores verdadeiramente doutos que eu cada vez fico mais atónito do pouco fundamento que tem a presunção vastíssima dos nossos». Como seria previsível, não poupa os Conimbricenses, afirmando que «não entenderam bem Aristóteles em muitos lugares, porque não tinham as notícias da História Filosófica que ultimamente se descobriram.» E, referindo-se à «Biblioteca Lusitana» de Barbosa Machado, torna-se sarcástico: «Todos os Portugueses oradores excederam a Cícero, os poetas a Virgílio. Ninguém se formou na Universidade senão com o aplauso de todos os mestres e coisas semelhantes e falsas e tolas. A maior parte dos discípulos eram já mestres ainda quando eram discípulos. Se algum deles saiu de Portugal, fez pasmar desta sorte aos estrangeiros que se ficaram babando. Se algum estrangeiro louvou a algum português, é um grande homem; se o estrangeiro censurou alguma coisa, é um magano, bêbado, ignorante. Todos os frades são santos, especialmente os Jesuítas, e morrem com cheiro de santidade.»
Na carta «Sobre a Perseguição Jesuíta», o Barbadinho mostra-se implacável para com os pretensos seguidores de Inácio de Loyola. Tendo como pano de fundo o sinistro exemplo de Port Royal, comenta: «Uma das suas maquinações favoritas era inspirar aos príncipes o espírito de desconfiança e perseguição, para lhes descrever qualquer novo sentimento como herético e de os sócios aparecerem como únicos protectores do Catolicismo. Se em França não fizeram mais, foi porque aí existiam contra-intrigas dos parlamentos, das universidades mais iluminadas, dos prelados bem instruídos que rebatiam estes golpes. E explicita, em 1765, uma curiosa advertência que só com a Revolução Francesa assumiria todo o seu sentido: «Os príncipes não ouvem a importante verdade de que já não são senhores dos dinheiros públicos, mas meros administradores, unicamente para vantagem dos povos. E não se encontra nenhum conselheiro, nem confessor, que lhes explique e inculque esta verdade evangélica.» Evidencia-se, no entanto, algum pessimismo em Verney: «Dir-me-á alguém que, no presente, iluminados os príncipes e abatidos os Jesuítas, estará tudo mudado. Deus queira, mas a prática mostra o contrário. Aquele pensar jesuítico enraizado em todas as cabeças, desde a infância, tornou-se numa outra natureza, e são necessários muitos anos, muita leitura e excelente educação para o desenraizar.»
Como fazem questão de salientar os prefaciadores das «Cartas Italianas», «nesta correspondência não surge nenhuma alusão à hipótese de acabar com a Inquisição. Fica bem a Verney propor o fim imediato dos hediondos autos-de-fé. Não fez o mesmo a respeito da Inquisição como instituição. Verney parece acreditar que seria possível reformar o monstro. Não se deu conta de que não há forma de fazer isso: os monstros não se reformam – matam-se.» Mas Ana Lúcia e Manuel Curado procuram uma explicação para a incoerência do autor do «Verdadeiro Método de Estudar»: «Apesar de escrever além fronteiras, Verney não está fora da sociedade. As observações que faz sobre os políticos civis e sobre a politiquice da Cúria Romana mostram a complicada rede de interesses à volta do Tribunal do Santo Ofício. Acabar com a Inquisição significaria acabar com um modo de vida social e Verney não tem a audácia suficiente para esboçar essa hipótese. Do ponto de vista desta correspondência, um mundo sem o Santo Ofício é tão impensável quanto um mundo sem ordens militares e sem Catolicismo. A grande actualidade de muitos dos seus conselhos para Portugal faz com que apressadamente o consideremos um pensador com ideias utópicas para o tempo. A ideia de reformar o que não pode ser reformado [sic] revela o extraordinário realismo do autor.» Também o antijudaísmo detectável nalguns destes escritos do ilustre exilado poderá ser atribuído à época em que viveu.
Enfim, não há bela sem senão. Mas, no caso, prevaleceram largamente as Luzes…
Luís António Verney, «Cartas Italianas», Edições Sílabo, 2008, 207 páginas