Harold Bloom (Romances e Romancistas)

Sob a égide de Shakespeare

António Rego Chaves

«Este grosso volume trata de cinquenta e seis romancistas e de uns cem romances, com o suplemento de alguns ensaios de James Baldwin e de uma peça teatral de Oliver Goldsmith» – anuncia o autor na introdução. Acrescenta: «Obras de estrutura colossal, como o «Ulisses» de Joyce ou a vasta narrativa de Proust [«Em Busca do Tempo Perdido»] foram excluídas e destinadas ao volume consagrado à épica. O mesmo aconteceu, de forma inevitável, com «Moby Dick», de Melville.» Discutível? Decerto. Aliás, quase tudo o que Harold Bloom escreve será discutível, mas também quase tudo possui o selo de uma cultura enciclopédica e de um fulgurante talento.

Basta deitar um olhar para o índice onomástico e ficamos a saber quem são os «deuses» do ensaísta: Shakespeare, «primus inter pares», se é que nasceu ou nascerá alguém que se lhe possa comparar, e Freud. Dezenas de vezes citados, o primeiro como mestre descobridor de muito do que se sabe sobre o comportamento dos humanos, o segundo como seu diligente discípulo, percorrem estas quase nove centenas de páginas para nos ajudarem a entender escritores, personagens, atitudes, condutas, situações.

Não exageramos o papel atribuído por Bloom a Shakespeare. Atente-se nesta sua asserção: «A influência de Shakespeare no romance é consignada aqui em Jane Austen e Stendhal ou em Balzac e Dickens, até ao seu ponto culminante com os niilistas de Dostoievski e as tragédias bucólicas de Hardy, para logo se renovar com Woolf e Joyce, Lawrence e Beckett, Iris Murdoch e o Roth d’ ‘O Teatro de Sabbath’.» E chega a garantir que só fundindo Dante com Cervantes teríamos o equivalente a Shakespeare!

O crítico literário e professor universitário espanhol Javier Aparicio Maydeu, ao recensear esta obra, queixou-se de que, entre os escritores de língua castelhana, apenas Cervantes e García Márquez foram abordados, «esquecendo-se» Pérez Galdós e Leopoldo Alas Clarín, Juan Rulfo, Mario Vargas Llosa e Juan Carlos Onetti, ou, mesmo, Juan Benet e Javier Marías. Acentuou, também, a ausência dos italianos Cesare Pavese, Dino Buzatti, Italo Calvino e Alberto Moravia, tal como a dos franceses Céline, Marguerite Yourcenar e Georges Perec. Que diremos de nós?

Diremos que apenas José Saramago foi contemplado neste rol de prosadores que começa por Cervantes (nascido em 1547) – mas em lugar de honra. O autor não poupa elogios a todas as suas obras, nomeadamente «O Evangelho segundo Jesus Cristo», «O Ano da Morte de Ricardo Reis» e «História do Cerco de Lisboa». Afirmava, em finais do século XX, o seguinte acerca do nosso único Nobel da Literatura: «Considero-o o maior romancista vivo do planeta, superior a todos os europeus e americanos contemporâneos, quer escrevam em inglês, em espanhol ou em português.»

Conclui Javier Aparicio Maydeu: «’Novelas y novelistas’ é um livro esplêndido, e ao mesmo tempo um proveitoso guia de leituras se pusermos de lado conhecidas tendências de Mr. Bloom como a omnipresença de Shakespeare e Freud, as invectivas contra algumas escolas críticas contemporâneas ou o interesse pela filosofia do romance em detrimento da sua técnica. Não é uniforme, mas é tão esmagadora a cultura literária de Bloom, e tão sedutoras se revelam essas genealogias secretas que conhece e adivinha entre textos e autores, que não se pode senão mitigar os seus preconceitos, arredar as suas limitações e desfrutar das suas conquistas.»

As afirmações do crítico espanhol serão muito pertinentes, mas talvez se imponha também vincar que Harold Bloom se assume como «um dos últimos defensores da fé estética, a fé no pacto entre os escritores talentosos e os leitores criteriosos.» Ou seja, «traduzindo» para uma linguagem menos ambígua, como já fizemos neste espaço por ocasião da recensão d’ «O Cânone Ocidental»: a literatura não deve estar ao serviço de fins pessoais, sociais, morais ou políticos. Os seus principais «inimigos» seriam sobretudo marxistas, feministas, afrocentristas, parisienses inspirados em Michel Foucault ou Jacques Derrida, todos militantes daquilo que denomina «Escola do Ressentimento». E porquê? Porque a todos eles opõe uma pretensa «autonomia do estético», uma escrita «pura», estranha à exigência de transformar o mundo onde vivemos, onde aceitamos ou não aceitamos o «statu quo» e onde decidimos tomar ou não tomar partido.

Estranho é que, perfilhando tais concepções, o grande conhecedor das letras e dos homens que é o autor tenha declarado o que acima referimos sobre José Saramago, que sabia marxista, embora «bastante excêntrico». Não apenas «bastante excêntrico», seja dito em abono da verdade, como «bastante» consequente enquanto homem, escritor e cidadão do mundo…

---

Autores estudados (ordem por ano de nascimento): Miguel de Cervantes, Daniel Defoe, Jonathan Swift, Samuel Richardson, Henry Fielding, Laurence Sterne, Tobias Smollett, Oliver Goldsmith, Fanny Burney, Jane Austen, Stendhal, Mary Wollstonecraft Shelley, Honoré de Balzac, Nathaniel Hawthorne, Charles Dickens, Anthony Trollope, Charlotte Brontë, Emily Brontë, George Eliot, Gustave Flaubert, Fiódor Dostoievski, Lev Tolstói, Mark Twain, Émile Zola, Thomas Hardy, Henry James, Kate Chopin, Joseph Conrad, Edith Wharton, Rudyard Kipling, Willa Cather, Hermann Hesse, Upton Sinclair, Stephen Crane, E. M. Forster, Robert Musil, Virginia Woolf, James Joyce, Franz Kafka, D. H. Lawrence, Sinclair Lewis, Zora Neale Hurston, F. Scott Fitzgerald, William Faulkner, Ernest Hemingway, Vladimir Nabokov, André Malraux, John Steinbeck, Nathanael West, George Orwell, Graham Greene, Robert Penn Warren, Samuel Beckett, Richard Wright, William Golding, Albert Camus, Bernard Malamud, Ralph Waldo Ellison, Saul Bellow, Walker Percy, Carson McCullers, Anthony Burgess, Iris Murdoch, William Gaddis, José Saramago, Norman Mailer, James Baldwin, Flannery O’Connor, Gabriel García Márquez, Ursula K. Le Guin, Toni Morrison, Philip Roth, Cormac McCarthy, Don DeLillo, Thomas Pynchon, Paul Auster e Amy Tan.

Harold Bloom, «Novelas y novelistas – El canon de la novela», Paginas de Espuma, 2012, 879 páginas