António Rego Chaves
Manuel Pedro Cardoso, teólogo e pastor da Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal, ao fazer publicar «Uma Introdução ao Protestantismo», presta, pelo menos por dois motivos, um óptimo serviço a um potencial público leitor: em primeiro lugar, porque, numa linguagem acessível, expõe as origens históricas e os princípios fundamentais da sua fé; depois, porque aborda o tema da recepção do protestantismo no nosso país, cujos poderes foram por via de regra avessos a novas ideias e crenças.
A minha geração recorda-se de uma época asfixiante em que, inserida como estava numa sociedade pretensamente católica (decerto mais pretensamente católica pelas palavras do que pelos actos, pelas declarações grandiloquentes de alguns altos dignitários do regime do que por o seu exemplo ser conciliável com qualquer interpretação honesta da mensagem cristã), os protestantes eram considerados pela generalidade dos clérigos e leigos ligados ao Vaticano como uma espécie de «inimigo principal» da «única religião verdadeira» – que seria a corporizada por Pio XII e por Manuel Gonçalves Cerejeira, «inesquecível» Cardeal Patriarca de Lisboa. Passado o relativo terramoto do Vaticano II de João XXIII e Paulo VI, cuja lição ecuménica é hoje sistematicamente distorcida por Joseph Ratzinger e pelo Opus Dei, não podemos dizer que os católicos portugueses se tenham em massa tornado menos intolerantes. Contudo, a atmosfera propícia à liberdade de expressão que ainda não se extinguiu de todo desde o 25 de Abril permite que sejam editadas sem represálias obras como esta, que dificilmente seriam dadas à estampa, no que respeita à odienta e odiosa recepção do protestantismo em Portugal, durante as ditaduras de Salazar e Marcelo Caetano.
De Damião de Góis a Fernão de Oliveira e Gil Vicente, todos eles mais ou menos suspeitos de simpatia por Erasmo, ao confesso anglicano Cavaleiro de Oliveira, a preocupação das autoridades portuguesas foi sempre a mesma: manter a qualquer preço a nação indemne ao «vírus» protestante surgido no Norte da Europa, até que, chegado o liberalismo do século XIX e, depois, proclamada a República, deixou de ser possível conter com eficácia a «epidemia» que punha em causa o monopólio espiritual de Roma. Mesmo assim, o Estado Novo tentou, ainda que com menos êxito do que o século XVI, manter bem acesa a «santa» intolerância perante a Reforma de Lutero.
O pastor Manuel Pedro Cardoso, depois de se debruçar sobre as origens históricas do protestantismo, expõe com a maior clareza os quatro princípios fundamentais que o norteiam desde o início: «sola gratia» (só pela graça), «sola fides» (só pela fé), «sola scriptura» (apenas na Escritura) e sacerdócio universal de todos os crentes.
«Sola gratia», explica, «combate a crença de que o ser humano tem de fazer alguma coisa se quiser ganhar a bênção de Deus. Essa ‘alguma coisa’ seriam as boas obras: faz-se um sacrifício – pensa o homem, tradicionalmente – e a Divindade, em troca, como compensação, satisfaz o pedido do crente.» Mas «Deus é que, soberanamente, e antes ainda mesmo de nascermos, predestina aqueles que se hão-de salvar».
A expressão «sola fides» significa que «é só pela fé que podemos responder à graça de Deus». (…) «Com rigor, não é pela fé que somos salvos ou justificados, mas pela graça. Somos salvos pela graça, mediante, por meio da fé.» (…) «Fé não é sinónimo de ‘acreditar’, mas de ‘aceitar’. É o sim do homem à graça de Deus.»
Por «sola scriptura» entende-se que «só é legitimamente cristão aquilo que tem o apoio da Bíblia». Isto é: «a Bíblia é a única e suficiente regra de fé e prática». Sabendo-se que as autoridades da Igreja Romana recusaram durante séculos aos leigos católicos o direito de ler e interpretar a Bíblia, argumentando que eles não tinham preparação para a compreender, ao mesmo tempo que empolavam a importância atribuída à Tradição (tantas vezes criadora de novas doutrinas, novas práticas e novos dogmas alheios ao «seu» Livro Sagrado), compreende-se que este princípio fosse um dos que mais ajudaram a separar as águas entre cristãos. Verdade é que, salienta o autor, «o protestantismo mantém no século XXI o essencial do que proclamou nos dias da Reforma, pois nenhum dogma foi criado dentro do protestantismo em 500 anos».
Que significa o princípio do sacerdócio universal de todos os cristãos? Desde logo, que quaisquer intermediários entre Deus e o crente não são indispensáveis, mas supérfluos, que é desnecessária a criação de uma casta sacerdotal, que nem sequer faz sentido distinguir entre «clérigos» e «leigos». Esta concepção teria também como consequência que, no protestantismo, o pastor não fosse considerado superior aos restantes cristãos – não um «padre» (pai), mas um simples irmão. Acentuando que a «pedra fundamental» do protestantismo é a fé em Jesus Cristo, o autor sustenta que «não se deve orar a Maria nem aos santos» e que o título «Nossa Senhora» é teologicamente impróprio, pois, por natureza, «como diz a Escritura, há um só Senhor». Releva que «Jesus e Maria não são um casal de salvadores da mitologia pagã», sendo «o título de Nossa Senhora contrário a uma fé cristocêntrica». Acentua que «o culto de Maria não tem absolutamente nenhum apoio nas Escrituras e vive apenas da Tradição» e que os movimentos mais opostos à abertura preconizada pelo Vaticano II são, não por acaso, «defensores acérrimos do culto de Maria». No que à veneração dos chamados «santos» se refere, sublinha que «a doutrina que faz supor continuarem os que morreram fiéis a velar por nós é simpática, até certo ponto – mas não tem fundamento na revelação bíblica nem na razão.» (…) «No entanto, os protestantes não têm dificuldade em referir-se a Santo Agostinho, a São Jerónimo, ou a São Francisco de Assis, cristãos que se notabilizaram pela sua dedicação à causa de Jesus Cristo.» E interroga, neste contexto: «Porque não falar de um São Lutero, de um São Guilherme Taylor, de um Santo Alberto Schweitzer ou de um São Luther King?»
Manuel Pedro Cardoso, «Uma Introdução ao Protestantismo», Instituto Piaget, 2006, 242 páginas