António Rego Chaves
Pablo Neruda (1904-1973) foi sempre adorado ou detestado, não era alguém a quem se pudesse ser indiferente: mas, a uns, só lhes tocava o autor dos “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” e da restante obra lírica; outros apenas aderiam por inteiro a textos como o «Canto Geral», onde imperam as preocupações políticas. O mesmo é dizer que havia (e há) quem prefira a delicada sensibilidade do permanente amante que o escritor foi, ao contrário daqueles a quem o que verdadeiramente importava (e importa) são os colonizadores e os colonizados, a opressão e a liberdade, os exploradores e os explorados que povoam muitas das suas mais incendiárias páginas.
Antonio Skármeta, criador de «O Carteiro de Pablo Neruda» – referimo-nos ao livro, não ao filme de Michael Radford, com música de Luís Bacalov, que foi um êxito mundial e cuja finalização custou a vida, exactamente doze horas depois de terminado, ao grande actor italiano Massimo Troisi, de 41 anos, que se encontrava prestes a ser submetido a uma transplantação cardíaca –, decidiu assinalar à sua maneira o centenário do nascimento do Nobel da Literatura de 1971. E explica-nos: «Este livro é acerca do que Neruda fez da minha vida e do que eu como escritor fiz ao inspirar-me na vida de Neruda.» Mas, em boa verdade, o que prevalece é um ensaio no mínimo inconsistente sobre a vida e obra do poeta, seguido de uma selecção de poemas de Neruda, que Skármeta faz questão de nos «explicar» um a um, decerto na melhor das intenções, mas com duvidosa argúcia.
Lida esta obra de Antonio Skármeta, talvez passemos a simpatizar um pouco menos com a pessoa que foi Pablo Neruda. Ou muito mais. A simpatizar um pouco menos: pois não ficamos a saber que os «Vinte Poemas de Amor», que julgaríamos inspirados por uma única mulher, foram de facto dirigidos não a uma, nem a duas, mas pelo menos a três mulheres diferentes? Será possível que o amador de vinte anos tenha em tão pouco tempo amado três Heloisas, três Beatrizes, três Lauras?
A simpatizar muito mais: «A doença que o invade e o arrastará à morte já o acompanha nos seus momentos de maior glória, quando é embaixador do Chile em França, enviado pelo revolucionário Presidente Allende, quando viaja até à Suécia para receber o Prémio Nobel da Literatura». Escutamos então os derradeiros lamentos de quem sabe que está próximo o momento de abandonar todos os sonhos e realidades que o prendem à Terra: «Não vou ao mar neste longo Verão/cheio de calor não vou mais além/dos muros, das portas e das gretas/que envolvem as vidas e a minha vida.» Depois o silêncio para o exterior, a agonia, o trágico solipsismo da espera pelo fim de tudo. Antonio Skármeta evoca com pertinência o Nilsson Schmilsson de «O Cowboy da Meia-Noite»: «Everibody is talking at me, I can’t hear a word they’re saying, only the echoes of my mind.»
Era um homem multifacetado, Pablo Neruda. «Posso escrever os versos mais tristes esta noite», (…) «é tão breve o amor, e é tão longo o esquecimento», lamentava em 1924. Onze anos passados, num violento trovejar de cólera, que na altura decidiu não tornar público, contra a mesquinha e abjecta raivinha da matilha literatiqueira e politiqueira que o tentava abocanhar, não lhe perdoando o facto de ser venerado e recitado por muita gente humilde, ao mesmo tempo que era respeitado e admirado por individualidades de indiscutível mérito e prestígio, zurzira a gentalha que, movida pela inveja ou por preconceitos ideológicos, o perseguia e caluniava: «Cabrões/filhos da puta./ Nem hoje nem amanhã/nem nunca/acabareis comigo. Tenho os testículos cheios de pétalas,/tenho os cabelos cheios de pássaros,/tenho poesia e vapores/cemitérios e casas/gente que se afoga,/fogo nos meus vinte poemas…» Por fim, «tornou-se porta-voz do povo, das suas mágoas e alegrias, e teve também um pouco de tempo para a canção mais íntima e o sussurro, derrubando assim a caricatura de ser um poeta fácil, inchado e militante, como os adversários quiseram espalhar» – sublinha Antonio Skármeta.
«A solidão era para ele um estado estéril próximo do suicídio. Não podia conceber a existência sem amor. Esse amor era uma verdadeira expansão natural, como uma respiração. Concebia também a poesia desta forma» – fez notar o escritor e diplomata Jorge Edwards, um dos seus mais próximos amigos. Talvez também por não saber viver sem ajudar os olvidados – aqui fica o castelhanismo, que seja em homenagem ao célebre filme de Luis Buñuel –, o comunista Pablo Neruda, nos seus últimos anos, apoiou com todas as forças que ainda lhe restavam o regime democrático do «utopista» Salvador Allende, que prometera distribuir «meio litro de leite por dia a cada criança chilena». Ao morrer, vítima de cancro e mergulhado em infinita tristeza, a 23 de Setembro de 1973 – apenas doze dias depois do bárbaro golpe de Estado liderado pelo torcionário Augusto Pinochet –, decerto recordava ainda Federico Garcia Lorca, assassinado pelos franquistas, que assim se referira, em 1934 (?), ao seu querido companheiro chileno: «Um poeta mais perto da morte que da filosofia, mais perto da dor que da inteligência, mais perto do sangue do que da tinta. Um poeta cheio de vozes misteriosas que felizmente ele próprio não sabe decifrar; um homem verdadeiro que já sabe que o junco e a andorinha são mais eternos do que a face dura da estátua. (…) Mantém-se frente ao mundo cheio de sincero assombro e faltam-lhe os dois elementos com que viveram tantos falsos poetas, o ódio e a ironia. Quando vai castigar e levanta a espada, encontra logo uma pomba ferida entre os dedos.»
Estava tudo dito? Ainda não. Há apenas pouco mais de quatro meses, por ocasião do centenário do nascimento de Pablo Neruda, a 12 de Julho, Carlos Fuentes, em fulgurante síntese, assinou algumas das mais justas e belas palavras a que o autor de «Vinte Poemas de Amor» e de «Canto Geral» teve direito em pleno século XXI: «Neruda não é Neruda, é todos os homens: é o poeta.»
Antonio Skármeta, «Neruda por Skármeta», Editorial Teorema, 2004, 207 páginas