António Rego Chaves
Em finais de 2001 foi publicado postumamente o que parecia ser o último volume do monumental «Diário» de Julien Green (1900-1998), com o título «En avant par dessus les tombes», que poderíamos traduzir por «Em Frente por Cima das Sepulturas» ou, em versão porventura especulativa, «Em Frente para Além das Sepulturas». A expressão deve-se a uma frase atribuída a Goethe, então destroçado pela morte de seu filho, e constitui um veemente apelo à vida, depois de sofrida uma das mais dolorosas perdas que alguém pode experimentar. Surge-nos agora o que constitui, de facto, o derradeiro texto de Julien Green, o XVIII volume do «Diário», «Le Grand Large du soir» («O Alto Mar do Crepúsculo», diríamos, embora conscientes da incapacidade de conservar a bela e inultrapassável simplicidade do título francês). Escrito entre 13 de Maio de 1997 e 1 de Julho de 1998 (Julien Green teria completado 98 anos a 6 de Setembro), o autor retoma aqui a sua longa meditação sobre a existência, a vida e a morte, Deus e o Homem, desta vez não com angústia, mas com luminosa serenidade.
«Aos 17 anos – escreve o autor norte-americano de expressão francesa a 5 de Maio de 1998 – Tolstoi pôs-me entre as mãos os Evangelhos; explico-me: fez-me compreender a sua profundeza humana. Estava na frente, tinha necessidade disso. Devo ao Tolstoi cristão nunca mais ter mudado neste ponto até ao dia de hoje.» Curiosamente, um outro místico nascido poucos anos antes de Julien Green (1889), o seu desconhecido «inimigo» austríaco Ludwig Wittgenstein, revelaria nos «Cadernos» (1914-1916) ter descoberto em plena Grande Guerra, na província do Império Austro-Húngaro da Galícia, onde se encontrava destacado, a «Breve Exposição dos Evangelhos» de Tolstoi. Ray Monk, o reputado biógrafo do filósofo vienense, salienta que aquela obra do escritor russo salvou Wittgenstein do suicídio que procurara no campo de batalha e acrescenta: «O livro tornou-se para ele numa espécie de amuleto: levava-o consigo para todo o lado aonde ia e lia-o com tanta frequência que lhe conhecia passagens inteiras de cor.» («Par coeur», dizem os franceses. «Apprendre par coeur», isto é, aprender por meio do coração e até dentro do coração). Não será ousado afirmar que, para estes dois grandes espíritos do século XX, o fideísmo esteve sempre longe de se metamorfosear em simples evidência intelectual, do tipo «dois e dois são quatro».
Voltemos a Julien Green. Protestante convertido ao catolicismo desde os 16 anos, anticlerical, opositor aos «modernismos» do Vaticano II, homossexual, amigo do neotomista Jacques Maritain, de André Gide e Jean Cocteau, o escritor enfrenta neste volume a ideia de morte, para ele indissociável de um encontro definitivo com Deus. Firme na sua fé, não se perfila nunca como um homem angustiado ou assaltado pela dúvida, antes como um crente senhor das suas certezas e para quem a teologia e os «funcionários da religião, uma espécie de sociedade anónima» pouco importam, seguro como está de ter recebido a graça de acreditar. Cita Pascal: «Ninguém é tão feliz como um verdadeiro cristão.» Refere um episódio bíblico e sentencia: «Leitura do encontro de Cristo com Nicodemos. Este vem à noite. Queria acreditar, mas é um racionalista que põe problemas. Que vá para o diabo, a razão! Vir à noite, é já uma confissão na alma do que põe problemas.» E reduz com um inabalável vigor todos os grandes enigmas a um só, que aliás desde há muito considera desvendado: «Única questão importante: Deus está em nós, salvemos a imagem que Ele nos confiou.»
Mas será esta obra do intelectual Julien Green redutível à temática da morte e da eternidade? Obviamente, não. O amor, a amizade, a solidariedade, Schumann, Schubert, Beethoven, John Donne, Novalis, Hölderlin, Heine, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Kierkegaard, Oscar Wilde povoam estas páginas. O «caso» Oscar Wilde fá-lo estremecer de indignação, mesmo mais de um século depois de ocorrido, até porque o irlandês foi um Dreyfus sem «dreyfusards». A sua cólera desaba sobre Émile Zola, pois o polemista de «J’accuse» não assinou a petição reclamando a redução da pena aplicada ao autor de «De Profundis» e da «Balada do Cárcere de Reading» pela sua ligação com Alfred Douglas. No entanto, tal como Zola, muitos outros intelectuais da época recusaram tal gesto – citemos apenas Henry James, Jules Renard e François Coppée. Quanto ao mais célebre dos «dreyfusards», pouco encontraria em comum com um esteta amoral da estirpe de Oscar Wilde, que manifestara, segundo refere o seu insuspeito biógrafo Richard Elmann, uma estranha simpatia pelo comandante Ferdinand Walsin-Esterhazy, o verdadeiro responsável pelos actos de espionagem em favor da Alemanha devido aos quais Dreyfus havia sido injustamente condenado.
Prevalece, no entanto, neste XVIII volume do «Diário», a reflexão própria de um cristão que sabe estar iminente a sua morte. «Tenho a tranquilidade de um selvagem. Estou feliz por estar na Terra e creio na bondade de Deus. Exclusivamente. Tudo está dito para mim com estas palavras.» Roça a arrogância a solidez desta convicção.
Pobre em espírito mas não pobre de espírito, Julien Green não se esquece de condenar tanto a antiga «guerra das armas» como a omnipresente «guerra do dinheiro, diferente na aparência, mas semelhante nas consequências», e regista: «Em todas as vidas, quaisquer que sejam a riqueza, a liberdade, nunca temos senão uma única morada: nós próprios. E nem os tormentos, nem os desastres, nem a glória nos podem expulsar dela.» (…) «Só a caridade abre portas e janelas e engrandece esta casa (…) e a caridade é o acolhimento visível, desinteressado, do nosso próximo.»
Últimas palavras, escritas a 1 de Julho de 1998, pouco mais de um mês antes da morte: «Tenho de render-me à evidência, já não ando muito bem, (…) sou forte mas a estátua tem pés de argila. Acerca do mundo exterior o que me dizem e o que me chega ao conhecimento não me parece ter o menor interesse. Os acontecimentos são interiores.» Faleceria a 13 de Agosto, assistido pelo dedicado filho adoptivo, Jean-Éric Green.
Julien Green, «Le Grand Large du Soir», Flammarion, 2006, 297 páginas