A «grande guerra» de cada dia
António Rego Chaves
Mais de setecentas páginas de texto, duzentas e nove cenas e perto de quinhentas personagens – eis, em números formados por três dígitos, a «tragédia em cinco actos», parcialmente publicada na revista «Die Fackel» («O Archote»), que Karl Kraus intitulou «Os Últimos Dias da Humanidade» e fez editar na sua forma definitiva em 1922. Não são apenas os tempos conturbados da «Grande Guerra» que ficam evocados perante o leitor – é talvez sobretudo o nosso quotidiano mais mesquinho e mais abjecto que se encontra descrito na peça teatral, cujo sentido e alcance parecem manter-se na íntegra, cerca de um século depois de concebida.
Dir-se-ia que nada escapa à argúcia de Karl Kraus na sociedade vienense (ou em qualquer outra considerada «civilizada») em matéria de instituídas hipocrisias, torpes mentiras e desprezíveis mentirolas públicas. A I Guerra Mundial não se trava apenas na frente de batalha, evidencia-se a cada passo na chamada «retaguarda»: as tertúlias dos «cafés», as redacções dos jornais, as ruas da capital austríaca. O obsceno espectáculo da corrupção, do desrespeito dos indivíduos pelos indivíduos, da baixeza moral, surge um pouco por todo o lado: patrioteirismo em vez de patriotismo, cobardia em vez de frontalidade, prosápia balofa em vez de verticalidade das atitudes.
O mais curioso é que o escritor/jornalista nada quis inventar: olhou à sua volta, viu com olhos de ver, escreveu, transcreveu e, depois de deixar os factos falarem por si, deu-nos notícia da sua intervenção: «Os feitos mais inverosímeis aqui relatados aconteceram na verdade; eu pintei o que eles só fizeram. Os diálogos mais inverosímeis aqui travados foram pronunciados nesta exacta forma; as mais cruéis fantasias são citações» – assevera Karl Kraus no prefácio. Neste contexto, a obra pode ser lida como um inquérito sociológico e o que ficamos a saber daqueles a quem chamamos «os nossos semelhantes», ainda que o sejam pouco, está longe de lisonjear o humano.
Acentua o germanista Gilbert Ravy: «A tragédia ‘Os Últimos Dias da Humanidade’ é um enorme panfleto dialogado contra a guerra, uma visão apocalíptica e terrivelmente lúcida do futuro, uma obra dramática única no seu género cujos processos influenciaram todo o teatro alemão dos anos 20 e 30 e posterior, quer seja expressionista, épico ou documental.»
António Sousa Ribeiro, que excelentemente traduziu, anotou e posfaciou esta selecção de cento e quinze textos da obra, considera que «é sobretudo o universo esmagador dos culpados e dos cúmplices do estado de coisas que está representado», enquanto «as personagens surgem como simples representantes de uma ‘doxa’ colectiva, de um senso comum materializado nos clichés da linguagem da Imprensa». Ou seja, imperam aqui os lugares-comuns, em regra avalizados por jornalistas venais, escritores oportunistas e pseudo-intelectuais em voga, todos eles responsáveis pela degradação da linguagem e por um aparentemente definitivo vazio de valores éticos.
Oskar Kokoschka, nas suas memórias («Mein Leben»), referindo-se a Karl Kraus, salientou «a sua capacidade satírica de reflectir a comédia, a tragédia e a vergonha do mundo»; Robert Musil, que não morria de amores por ele, opinando nos «Diários» ser o seu antibelicismo «moralmente tão estéril quanto o entusiasmo guerreiro», considerou-o um «ditador do espírito», a par de Freud, Adler, Jung, Klages e Heidegger – o que, decerto, não constitui desonrosa comparação; Walter Benjamin, que lhe consagrou um brilhante ensaio, chamou a atenção para o seu «génio mimético», com o qual extirpou «as larvas da venalidade e da tagarelice, da baixeza e da credulidade, da infantilidade e da rapacidade, da voracidade e da perfídia».
Foi ainda Benjamin quem talvez tenha aplicado os termos mais adequados para o evocarmos sem que seja ignorada a singularidade da sua grandeza: «Kraus vê abater-se sobre ele toda a história universal por meio das enormidades de um único ‘fait-divers’ local, de uma só frase, de um só pequeno anúncio. Tal é a herança que lhe vem dos sermões de Abraham a Santa Clara [predicador alemão, 1644-1709, célebre na época da peste].»
Canetti que, tal como Musil, se rebelou contra a [muito consentida e acarinhada] «ditadura» espiritual do criador de «Die Fackel» escreveu sobre ele dois esclarecidos textos, que intitulou «Karl Kraus – Escola de Resistência» (1965) e «O Novo Karl Kraus» (1974). No primeiro chamou-lhe «mestre da indignação» e justificou assim esta ideia, no que se refere a «Os Últimos Dias da Humanidade»: «Salta aos olhos até que ponto ele vê sempre lado a lado os que a guerra martirizou e os que ela engordou; os mutilados de guerra e os que se aproveitaram da guerra; o soldado cego e o oficial que quer que ele lhe faça a continência; o nobre rosto do enforcado e o esgar bochechudo do carrasco; não se trata, nele, dessas coisas a que o cinema nos acostumou com os seus contrastes fáceis; elas encontram-se todas ainda carregadas de uma indignação que nada poderá apaziguar.»
Em «O Novo Karl Kraus», escreve o prémio Nobel da Literatura de 1981: «Há duas maneiras de ler ‘Os Últimos Dias da Humanidade’: primeiro, como uma cruel introdução aos últimos dias que efectivamente nos ameaçam; mas, depois, também como um quadro completo de tudo o que nos devemos demarcar, para, efectivamente, não chegarmos a esses últimos dias. O melhor seria encontrar força para fazer a experiência desta obra diferentemente, em diferentes ocasiões: das duas maneiras.»
É também neste segundo ensaio que Elias Canetti parece revelar-nos a chave secreta, o sentido mais profundo deste texto suscitado pelo flagelo da «Grande Guerra», ao encontrar a seguinte transcrição de um versículo da 2.ª Epístola de Paulo aos Coríntios numa carta de carácter privado escrita por Karl Kraus: «Quem será tocado por um sofrimento, sem que eu sofra também? Quem será humilhado, sem que eu me sinta arder de dor?»
Karl Kraus, «Os Últimos Dias da Humanidade», Antígona, 2003, 451 páginas