Um Kant subversivo
António Rego Chaves
Os antecedentes deste livro espelham na perfeição os condicionalismos da vida intelectual na Prússia de finais do século XVIII. Como recorda J. Gibelin, autor da introdução e seu tradutor para francês, Frederico II tinha morrido em 1786. Esse acontecimento constituiria o sinal para uma ampla investida contra a Aufklärung por parte do novo soberano, Frederico-Guilherme II, que adoptaria severas medidas repressivas destinadas a defender de quaisquer críticas a ortodoxia religiosa. Primeiro surgiu o Édito de Religião de 9 de Julho de 1788, que proibiu todas as tomadas de posição contra a crença instituída; a 19 de Dezembro do mesmo ano, o Édito foi completado por uma lei dirigida contra a liberdade de Imprensa; e, a partir de 1792, actuou uma comissão de censura, decerto muito atenta à «ameaça» que a Revolução Francesa representava, na época, para o reino.
Sinal dos tempos, a 14 de Junho de 1792 a censura proibiu a publicação da segunda parte de «A Religião nos Limites da Simples Razão». No entanto, Kant faria editar na íntegra a obra no ano seguinte, o que lhe valeu severa reprimenda escrita por parte do rei. O filósofo respondeu com exemplar dignidade à carta do monarca, a quem prometeu obedecer enquanto fosse seu súbdito, e fez publicar ambos os documentos no prefácio deste «Conflito das Faculdades», em 1798, então já sob Frederico-Guilherme III.
Kant não abdica neste texto de pôr em causa as três Faculdades ditas «superiores», ou seja, as de Teologia, Direito e Medicina, todas elas de algum modo «governamentalizadas», submetendo-as ao confronto com o incómodo saber tematizador da Faculdade de Filosofia, considerada «inferior», porque estranha a qualquer espécie de autoridade estatal.
O Poder prussiano pouco se preocupava com investigações intelectuais ou discussões de carácter teórico: utilizava os seus agentes (eclesiásticos, funcionários judiciais, médicos) para resolver as questões práticas. Esses agentes eram formados pelas três Faculdades «superiores» e tinham por missão ensinar os dogmas bíblicos, os códigos, os regulamentos sanitários. Quanto aos filósofos, se outros se ocupavam da salvação da alma, do bem social e da saúde física, que papel lhes poderia caber numa colectividade cujos saberes eram despoticamente tutelados pelo Estado? Nada mais, nada menos, responderia, do que salvaguardar, contra as Faculdades ditas «superiores» – e sobretudo a de Teologia, pretensa detentora de verdades «absolutas» – a autonomia intelectual, a integridade da consciência, o espírito, enfim, contra a «tirania da letra» e do autoritarismo eclesiástico. Em matéria de Religião, existiria apenas uma instância legítima a respeitar: a Razão Prática, cuja «Crítica» o filósofo fizera publicar em 1788. Kant mostra-se peremptório: «A Faculdade filosófica nunca pode depor as suas armas perante o perigo de que está ameaçada a verdade cuja guarda lhe está confiada, porque as Faculdades superiores jamais renunciarão ao desejo de governar.» Diziam os Antigos: «César não está acima dos gramáticos»…
Liberta da menoridade e do jugo eclesiástico, depois de interrogar os seus fundamentos e determinar a sua razão de ser, a consciência teria também de se tornar autónoma em relação a todos os entraves sociais ao progresso moral, pondo em causa os alicerces do poder jurídico e político. É neste contexto que, tendo já apoiado os norte-americanos contra os ingleses na guerra de independência, saúda a Revolução Francesa, em que vê uma vitória da ideia dos direitos do povo sobre a força dos preconceitos e das inclinações egoístas, permitindo-se um momento de optimismo em que a contenção parece superada pelo voluntarismo. Vale a pena lê-lo e relê-lo; ouçamo-lo, pela voz de Artur Morão, que excelentemente verteu para português este texto, por vezes tão arrevesado, e o disponibilizou on-line:
«É simplesmente o modo de pensar dos espectadores que se trai publicamente neste jogo de grandes transformações, e manifesta, no entanto, uma participação tão universal e, apesar de tudo, desinteressada dos jogadores num dos lados, contra os do outro, inclusive com o perigo de se lhes tornar muito desvantajosa esta parcialidade, demonstra assim (por causa da universalidade) um carácter do género humano no seu conjunto e, ao mesmo tempo (por causa do desinteresse), um seu carácter moral, pelo menos, na disposição, carácter que não só permite esperar a progressão para o melhor, mas até constitui já tal progressão, na medida em que se pode por agora obter o poder para tal. A revolução de um povo espiritual, que vimos nos nossos dias, pode ter êxito ou fracassar, pode estar repleta de miséria e de atrocidades de tal modo que um homem bem pensante, se pudesse esperar, empreendendo-a uma segunda vez, levá-la a cabo com êxito, jamais se resolveria, no entanto, a realizar o experimento com semelhantes custos – mas esta revolução, afirmo, depara nos ânimos de todos os espectadores (que não se encontram enredados neste jogo), com uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo, e cuja manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que não pode, pois, ter nenhuma outra causa a não ser uma disposição moral no género humano.»
O filósofo toma partido, e de forma bem explícita, não se coibindo de nos apontar quem foram os «bons» e os «maus» na Revolução Francesa, fazendo jus à sua fama, na Prússia, de temível e subversivo iluminista:
«Os adversários dos revolucionários não conseguiram, mediante recompensas pecuniárias, chegar ao zelo e à grandeza de alma que neles o simples conceito de direito suscitava, e até o conceito de honra da antiga nobreza guerreira (algo de análogo ao entusiasmo) se esvaneceu diante das armas dos que tinham em vista o direito do povo a que pertenciam, e se consideravam seus defensores; exaltação com que, em seguida, simpatizava o público, espectador externo, sem a menor intenção de cooperação.»
Emmanuel Kant, «Le Conflit des Facultés», Vrin, 1955, 149 páginas