António Rego Chaves
Compõe-se este livro de quatro partes: introdução de Santiago Zabala (1975), «Uma Religião sem Teístas nem Ateus»; ensaios de Richard Rorty (1931), «Anticlericalismo e Teísmo», e Gianni Vattimo (1936), «A Era da Interpretação»; e um diálogo entre os dois filósofos – «Qual o Futuro da Religião após a Metafísica» –, moderado pelo autor do texto inicial, doutorado em Filosofia pela Universidade Pontifícia Lateranense de Roma.
Esclarece Zabala: «Na filosofia contemporânea, Richard Rorty representa o pós-empirismo de cunho pragmático dos Estados Unidos e Gianni Vattimo o rumo pós-moderno da Europa latina. Ambos retomam do neopragmatismo de John Dewey e da hermenêutica de Hans-Georg Gadamer não somente a crítica à autocompreensão objectivista das ciências humanas, mas também o conceito de cultura (‘Bildung’).» (…) «Rorty e Vattimo partem do pressuposto de que antes do Iluminismo a Humanidade tinha deveres para com Deus, enquanto depois do Iluminismo ela passou também a ter deveres para com a Razão.» Após a «Era da Fé» e a «Era da Razão» teríamos a «Era da Interpretação», sendo a partir de agora o pensamento dominado por preocupações que não dizem apenas respeito à ciência, à filosofia ou à religião. Com a desconstrução da metafísica da presença (Nietzsche, Heidegger, Derrida) e a sua superação (John Dewey, Benedetto Croce, Gadamer), Rorty e Vattimo convidam-nos a aderir a uma nova cultura do diálogo. Acabariam as já clássicas perguntas sobre «ser e nada», «linguagem e realidade», «Deus e a sua existência», porque a objectividade passou a ser encarada como «consenso linguístico inter-subjectivo» e não como representação de algo que exista independentemente de nós e transcenda os humanos.
Pergunta o autor da introdução: «Mas quais são, segundo Rorty e Vattimo, os acontecimentos históricos que contribuíram para a desconstrução da metafísica? A Revolução Francesa (solidariedade), o Cristianismo (caridade) e o Romantismo (ironia). Graças a estes três acontecimentos, o progresso espiritual do homem consistiu principalmente na criação de um ‘eu’ maior, mais livre e sobretudo sem o medo de perder a sua identidade originária. Um dos méritos de Dewey consistiu em ter deixado claro que alcançamos a plena maturidade política apenas no momento em que conseguimos não necessitar de toda a cultura metafísica, aquela que acredita em poderes e forças não humanos.» E adianta: «Benedetto Croce, por seu turno, ao demonstrar que ‘não podemos não nos dizer cristãos’, reforçou a necessidade de uma presença do dogma e da ética cristã na cultura secularizada dos dias de hoje.» (…) «Gadamer, por fim, esboçou a cultura moderna do diálogo e das fusões, na qual o ‘conhecimento’ foi substituído pela ‘Bildung’ (edificação), ou seja, por uma renovada consciência de que nem tudo precisa de ser explicado cientificamente. Deste modo, a religião torna-se num ‘ethos’ [costume] universal, numa atitude antidogmática que substitui o pressuposto não só da hermenêutica, mas também da própria democracia.» E eis o paradoxo: «É ao desenvolver a própria vocação laica que o cristianismo se pode tornar numa religião universal e favorecer a renovação da vida civil.» Rorty reflecte a contundência de Nova Iorque: «Nós, pragmatistas, temos pela Verdade Absoluta e pela Realidade a mesma escassa consideração que o Iluminismo tinha pela Ira e pelo Juízo de Deus.» Vattimo usa da subtileza de Turim: «É preciso conseguir pensar o ser como não identificado, em sentido algum, com a presença característica do objecto.»
Atentemos, porém, nesta tese de Rorty e Vattimo: «Alguns de nós (nem todos) não conseguiram ficar afastados do ‘logos’ [razão] metafísico sem um acto de automutilação, sem mutilar a própria consciência daquilo que os transformou no que são (incluindo as mutilações que fizeram), e portanto a respectiva autoconsciência.»
Formulando de outra forma idêntica perplexidade: conseguirá o homem pós-moderno, que viveu o fim das grandes sínteses unificadoras produzidas pelo pensamento metafísico tradicional, viver sem angústia nesse mundo em que Deus já não existe, nesse mundo de meias verdades, nesse mundo sem quaisquer certezas que é o do «pensamento débil»? Se não há factos, mas apenas interpretações, isso bastar-lhe-á? João Paulo II falou do problema, na encíclica «A Fé e a Razão», frisando que a filosofia moderna, «em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem para conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos.» E chamou a atenção para a ausência de perguntas radicais sobre o sentido e fundamento último da vida humana, pessoal e social, por parte dos pensadores contemporâneos. Estaria o Papa polaco convicto de que estes poderiam dar respostas a tais interrogações se duvidassem dos dogmas católicos, essas arbitrárias «verdades absolutas» que os fiéis são compelidos a aceitar, obedecendo a uma Igreja que, vezes sem conta, já traiu a mensagem de Jesus?
Alerta Rorty: «Entre pessoas como eu e como Vattimo existe sempre uma grande diferença. Não há surpresa na constatação de que Vattimo cresceu num ambiente católico, enquanto eu cresci sem religião alguma.» Fará isto, como se costuma dizer, toda a diferença? Se deixássemos o Schopenhauer de «Da Necessidade Metafísica» responder, sem dúvida que ele optaria pela positiva. Mas, convenhamos, o filósofo alemão limitou-se aqui a substituir a «necessidade metafísica», por muitos vivida, pelo anticlericalismo. Bem achado, mas simplista. Conservemos, pois, estas asserções de Vattimo, não à guisa de conclusão, mas como imperativo horizonte de meditação: «‘Não podemos não nos dizer cristãos’ porque no mundo em que Deus morreu (dissolvidas as metanarrativas e ficando afortunadamente desmistificada toda a autoridade, mesmo a dos saberes ‘objectivos’) a nossa única possibilidade de sobrevivência humana está depositada no preceito cristão da caridade.» E alerte-se para que o amor ao próximo talvez não deva deixar de ser hoje entendido senão como um solene apelo a uma prática interpessoal concreta, quotidiana…e política.
«O Futuro da Religião», Richard Rorty e Gianni Vattimo, Angelus Novus, 2006, 104 páginas