António Rego Chaves
Será Harold Bloom um grande crítico literário? Parece inegável que sim. Mas, não sendo nós juízes de tal causa, digamos desde já que essa temática não nos preocupa. É público que, antes de escrever este livro, o autor tinha entre mãos um texto a que chamara «Sabedoria e Literatura». Operado entretanto ao coração – talvez não haja nada como um enfarte do miocárdio para termos a certeza de que não somos imortais – deitou o trabalho já realizado para o lixo e redigiu, porventura um tanto veloz, este erudito «testamento» espiritual. Diga-se de passagem, trata-se da consumação de um generoso desejo de transmissão das suas verdades a quem por cá se julga ainda longe de ser submetido aos últimos cuidados intensivos. Não nos parece, porém, que se possa considerar este estudo – «Onde Está a Sabedoria?» – à altura dos pergaminhos adquiridos por quem assinou obra tão sólida e arguta como «O Cânone Ocidental».
Percorrendo, sageza a sageza, os «monstros» hebreus ou gregos evocados e invocados por Harold Bloom – Job e o Eclesiastes, Platão e Homero, a par de Cervantes e Shakespeare, Montaigne e Francis Bacon, Samuel Johnson e Goethe, Emerson e Nietzsche, Freud e Proust, o Evangelho de Tomé e Santo Agostinho – ficamos tão perplexos quanto esmagados por tão insólita escolha. O merecimento das presenças é, porém, tão evidente quanto o injustificado das ausências, embora o enciclopédico ensaísta se tenha já assumido como um incorrigível desconhecedor de todas as culturas orientais: mas por que motivo não se detém em Epicuro ou Lucrécio, em Marco Aurélio ou Epicteto, em Séneca ou Cícero, em Jesus ou nos Actos dos Apóstolos, em Kant ou Schopenhauer, em Tolstoi ou Cioran, já que se recusa a estudar o Vedanta, a tomar em linha de conta os ensinamentos de Buda, a tentar compreender Confúcio?
Pouco importa que Bloom se considere a si próprio, pelo menos do ponto de vista cultural, um «judeu gnóstico» e que classifique o Novo Testamento como «uma poderosa leitura errónea da Bíblia hebraica». Neste plano, talvez fosse frutuoso ter seguido o exemplo do Aldous Huxley da «Perennial Philosophy» que, em 1946, movido pelo que hoje poderíamos chamar «um genuíno espírito ecuménico», procurou contribuir para o entendimento entre as grandes religiões de todos os continentes…
Não é esse o caminho seguido por Harold Bloom. Dedicando o seu trabalho ao «emersoniano de esquerda» e «pós-pragmatista» Richard Rorty, revela-nos que «esta obra surge de uma exigência pessoal, reflectindo a busca de uma sageza capaz de aliviar e esclarecer os traumas resultantes do envelhecimento, da recuperação de uma doença grave e da dor causada pela perda de amigos queridos». Move-se, assim, da vida para as letras, com um tímido aceno à filosofia ocidental. Mas é breve e débil a sua incursão nesse mundo semeado por pré-socráticos e cultivado durante 2500 anos.
O ensaísta não ignora os escolhos do mar aonde navega: «A nossa civilização continua dilacerada ainda entre um conhecimento e uma estética helénicos e uma moralidade e religião hebraicas. Poderíamos dizer que a mão da civilização ocidental (e, na realidade, de grande parte da oriental) tem cinco dedos mal conciliáveis: Moisés, Sócrates, Jesus, Shakespeare, Freud.» Mesmo que não seja verdade, é bem achado.
No domínio da sabedoria, os dados estão lançados. Bloom torna-se peremptório: «Competir com Homero, Shakespeare e Proust é uma empresa condenada sem remédio para quem não seja Ésquilo, Cervantes e Joyce.» Poderíamos perguntar-lhe: «E os filósofos, e os pensadores das grandes religiões, Senhor, onde estão eles na vossa tão radical limitação da lista de sages, estará ela sujeita a «numerus clausus?»
Fica claro que o autor prefere Jerusalém a Atenas, Homero a Platão e o Shakespeare do «Rei Lear», de «Macbeth» e do «Hamlet» a tudo o mais que foi escrito, «embora o conteúdo do seu magistério talvez seja o niilismo, esse niilismo que é a lição do rei Lear», e conceda que «o ensaio pessoal pertence a Montaigne, como o teatro pertence a Shakespeare, a epopeia a Homero e o romance para sempre a Cervantes».
Goethe e Johnson, autores sapienciais? Harold Bloom não alimenta quaisquer dúvidas: «Goethe era um pagão instintivo, que se cria dotado de um demónio próprio e manifestava espontaneamente essa ‘alegre sabedoria’ que Nietzsche tão desesperadamente procuraria atingir. A sabedoria johnsoniana é sombria e mordaz, à maneira do Eclesiastes.» Emerson e Nietzsche? «A grande distância que separa Emerson de europeus tão excepcionais como Nietzsche e Kierkegaard é que Emerson recusa qualquer ascetismo do espírito, e assim põe de parte, ao mesmo tempo, Sócrates e Jesus.» Freud, sobretudo o do «Mal-Estar na Civilização»? «Embora surja na época de Darwin, é uma figura curiosamente intemporal, tão antiga como a memória judaica. A sua judeidade é muito mais importante do que ele alguma vez pensou que pudesse ser, e, ao lado de Kafka, talvez defina retrospectivamente o que poderá ser ainda o judaísmo cultural no século que acaba de começar.» Proust? «Com cautela, mas com a segurança de uma grande fera que cai sobre a sua presa indefesa, aproxima-se do elemento fulcral da sua visão do ciúme, o seu sentimento de que a emoção se assemelha àquilo a que Freud chamou a defesa do isolamento, em cujo âmbito todo o contexto é eliminado, e um perigoso presente substitui todo o passado e todo o futuro.» O Evangelho de Tomé? «Ao contrário dos evangelhos canónicos, o de Judas Tomé, ‘o Gémeo’, poupa-nos a crucificação, torna a ressurreição desnecessária e não nos apresenta um Deus chamado Jesus.» Enfim, Agostinho?: «Tem Paulo como precursor, e Dante, Calvino e talvez Lutero como herdeiros.» (…) «A Cidade de Deus é para o cristianismo aquilo que os comentários do Alcorão são para o islão.»
Não sabemos se o leitor encontrará neste livro a resposta à pergunta formulada pelo seu título. Se a detectar, nada mais temos a dizer; em caso negativo, talvez lhe baste estudar mais História da Filosofia e das Religiões…e pensar muito. Bastará, mesmo?
Harold Bloom, «Onde Está a Sabedoria?», Relógio D’Água, 2008, 245 páginas