António Rego Chaves
Em finais da década de 1960 entrei na Faculdade de Letras de Lisboa para ser submetido a um último exame e terminar o meu curso. Levava, sublinhado, o livro de Borges Coelho «A Revolução de 1383», onde um tal «A. Barreirinhas» [Álvaro Cunhal] era várias vezes temerariamente citado. Embora o autor fosse considerado «persona non grata» pelas Virgínia Rau e pelos Borges de Macedo, cúmplices passivos da votação ao ostracismo de um Oliveira Marques, de um Joel Serrão e do próprio Borges Coelho, este indelevelmente marcado pelo ferrete do passado de resistente antifascista e prisioneiro político, apoiei-me nos três proscritos para desenvolver uma das questões postas, sobre a crise que «empurraria» D. João I até ao Poder. Importa acrescentar que, na altura, Borges Coelho tinha já feito editar «Raízes da Expansão Portuguesa», obra a que o regime salazarista honrara com a retirada do mercado. Só depois surgiriam cerca de vinte outros trabalhos seus, como o pioneiro «Portugal na Espanha Árabe», «Comunas ou Concelhos» e «Questionar a História».
Tendo hoje entre mãos este sumptuoso volume que é antologia de Fernão Lopes organizada por António Borges Coelho e talentosamente ilustrada por Rogério Ribeiro, recorro ao já citado «A Revolução de 1383», pois, para mim, como talvez para muitos outros «dinossauros», o nosso maior cronista é e será sempre sobretudo o homem que tão empolgantemente soube relatar o levantamento do povo de Lisboa contra a Leonor Teles e o Andeiro. Detenho-me na «Homenagem a Fernão Lopes» com que Borges Coelho abria «A Revolução de 1383». Escreveu aí: «Os sublevados ganharam a sua causa. Se a tivessem perdido, talvez conhecêssemos tão-só as maldições do poder. Assim, todo o 1.º e boa parte do 2.º volumes da ‘Crónica de D. João I’ são dedicados à narrativa e exaltação da gesta revolucionária. A prosa do cronista arde por Lisboa, pelos ‘ventres ao sol’, pelo ‘bom Portugal’ e, à escala humana, essa chama jamais se apagará. Por trás da vegetação das consoantes e das vogais da escrita arcaica, palpitam os grandes frescos, a vida medieval genialmente recriada pelo artista. As multidões estão ainda em movimento, os milhares de gritos misturam-se num único e tremendo brado que sobe como uma nuvem ou um vento de cólera para o céu. O povo de Lisboa, os vilões de Caspirre, os comunais armados de ‘estebas aguçadas e seus aviamentos’ são os protagonistas do drama. E esse protagonista colectivo ganha mais rosto, nitidez e estatura nas dezenas de retratos focados a cheio, surpreendidos em nudez desconcertante.» Se alguma dúvida tivéssemos, ficaria assim provado, não apenas que o historiador soube captar como poucos o alcance da visão do cronista, mas que a sua magnífica prosa nada tem de comum com a de muitos dos seus actuais e atabalhoados pseudopares. Estes, enumerando, sôfregos, catervas de factos e ideias, parecem não saber transmiti-las em bom português, oferecendo-nos, não poucas vezes, débeis redacções muito mais próximas das produzidas por preguiçosos adolescentes do secundário do que por um qualquer adulto bom conhecedor da sua língua-mãe. Terminava assim o autor deste texto de 1965 consagrado a Fernão Lopes: «Que o público português o possa ler em primeira mão, numa grafia actualizada, sem cortes e ilustrada pelos nossos artistas.»
Mais de quatro decénios passados, eis que Borges Coelho meteu ombros e levou a cabo a rude tarefa de realizar o seu já antigo desejo. Fiel, como poucos, a si próprio, conserva o seu honrado tom, sem um deslize, na nota introdutória que escreveu para esta edição da «Campo das Letras: «A história falava dos de cima (e ainda fala), mas Fernão Lopes abriu janelas para os de baixo. (…) «Messias da arraia-miúda», (…) «está atento aos de cima, que retrata com a verdade das suas humanas mazelas, e aos de baixo, fantásticos ou temíveis, se enchem as ruas de alegria ou de tumulto.» Assumindo a pesada responsabilidade de escolher o fundamental, quer do ponto de vista historiográfico, quer do ponto de vista literário, da «Crónica de D. Pedro I», da «Crónica de D. Fernando» e da «Crónica de D. João I», exprime o seu fundo respeito pelo homem que as escreveu: «Não lhe faltou coragem para não omitir os grandes que se bandeavam por Castela e cujos filhos ocupavam então os mais altos cargos da nova monarquia.» De facto, o tabelião/cronista nunca deixou de salvaguardar a sua proba independência, ainda que experimentasse legítimas simpatias ou antipatias. E, apesar de elogiar sem reservas Nuno Álvares Pereira pelo seu decisivo papel na libertação de Portugal do jugo castelhano, não escondeu que o valoroso militar, como sublinha Borges Coelho, «se fizera pagar, e bem, pelos serviços prestados», pois, «além das terras da Coroa, que arrebanhou de norte a sul do território, reuniu ainda na sua cabeça os três condados sobreviventes: o de Barcelos, o de Ourém e o de Arroiolos». Por outro lado, «também não omitiu que o Condestável chefiou no Conselho uma linha feudalizante de organização da nobreza, contraposta à linha monárquica [e favorável aos anseios da burguesia ascendente] de João das Regras.» Aliás, já em «A Revolução de 1383», lido e relido Fernão Lopes, Borges Coelho lembrara com todas as letras que o Condestável recebera «quase metade» de Portugal» exemplificando com os três mencionados condados, os lugares de Braga, Guimarães, Chaves, Montalegre, Porto de Mós, Ourém, Évora Monte, Estremoz, Borba, Almada, Montemor-o-Novo, Arroiolos, Vila Viçosa, Sousel, Alter do Chão, Monsaraz, Portel, Loulé e «numerosos reguengos e outras rendas de lugares chãos que sobejo seria nomear»…
Como sustentou António José Saraiva, Fernão Lopes, «pelo senso crítico com que joeirou a sua documentação, pelo método de crítica das fontes, vai muito além do seu tempo e antecipa-se aos historiadores do século XIX». Ninguém era hoje mais digno de o ressuscitar, utilizando uma grafia moderna, do que Borges Coelho. O Portugal do século XXI acaba de contrair uma nova grande dívida para com este seu exemplar cidadão e historiador.
Fernão Lopes, «Crónicas de D. Pedro I, D. Fernando e D. João I – Antologia», Campo das Letras, 2007, 455 páginas