António Rego Chaves
Autor de vasta e importante obra, o «judeu-não-judeu» Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria em 1917, foi educado em Viena e Berlim e tornou-se, depois, aluno e professor de Cambridge. O facto de ser, a um tempo, inglês, historiador e comunista dificultou-lhe a carreira universitária, erigindo-o muitas vezes em alvo de uma mais ou menos declarada «caça às bruxas», quer no Reino Unido, quer nos EUA, onde também leccionou, quer, mesmo, em França. Este último país foi palco de um caricato episódio censório que atingiu durante anos a magnífica síntese da história do século XX que intitulou «A Era dos Extremos» – tal como «A Era das Revoluções», «A Era do Capital» e a «Era do Império» dada à estampa em Portugal pela Editorial Presença.
Em França, a tradução foi tardia e nada pacífica: apesar de classificado pelo medievalista Jacques Le Goff como representante de «um marxismo inteligente e subtil», de elogiado pelo seu confrade Pierre Goubert, que o equiparou a Fernand Braudel, e de o seu livro ter sido encarado pelo historiador Krzysztof Pomian como impossível de ignorar por quem quer que quisesse escrever uma nova história do século passado, «A Era dos Extremos» foi recusado pela Gallimard, a Fayard e a Le Seuil. Explicações? Houve quem falasse de razões comerciais, ou chauvinistas, ou mesmo «científicas», estas devidas ao «subjectivismo» (leia-se, assumido marxismo) do autor. O que estava de facto em causa, porém, tornou-se evidente quando «Le Monde Diplomatique» e a editora belga Complexe «agarraram» a questão e venceram as hipocrisias dominantes, a que não escapou um Pierre Nora, ao considerar «obsoleto» o marxismo de Hobsbawm, num país onde o «arrependido» François Furet, com «O Passado de uma Ilusão», teria «arrumado» de vez a questão do comunismo.
«Tempos Interessantes – Uma Vida no Século XX», será tudo menos uma retractação de Eric Hobsbawm: «Os meses da minha estada em Berlim fizeram de mim um comunista para toda a vida, ou, pelo menos, um homem cuja vida perderia a sua marca característica e o seu sentido sem o projecto político a que se consagrou quando estudante, e isto apesar de esse projecto ter manifestamente falhado e de eu saber hoje, que estava, de facto, condenado a falhar. O sonho da Revolução de Outubro permanece algures vivo em mim, nalgum recanto da minha intimidade, como se se tratasse de um desses textos que foram apagados, mas que continuam à espera, perdidos no disco duro de um computador, que um especialista apareça para os recuperar.» Esta íntima convicção não o inibirá de condenar com clareza a definição do «inimigo principal» adoptada pelo Partido Comunista Alemão durante os anos da ascensão de Hitler ao Poder, de uma «estupidez suicida», pois a tese segundo a qual a social-democracia constituía um perigo maior que o nazismo «e de que podia, de facto, ser considerada “social-fascismo”, raiava a demência política». Aliás, como recorda, «os primeiros campos de concentração do Terceiro Reich foram originalmente destinados a neutralizar eficazmente os comunistas», o alvo principal dos nazis.
Já em Cambridge, ingressa, em 1936, no Partido Comunista Britânico (PCB). Devido a esse facto, ver-se-á afastado, quer das frentes de combate aliadas durante a II Guerra Mundial, quer da Comissão Britânica de Controlo formada para «reeducar» os alemães. «A política oficial promovia a discriminação e tratava-nos como traidores potenciais ou actuais, o que nos tornava extremamente suspeitos aos olhos dos nossos superiores e colegas» – observa, recordando os «cruzados da guerra fria». Embora a histeria anticomunista do senador McCarthy não se tivesse implantado na Grã-Bretanha com a amplitude e a violência que a caracterizaram nos EUA em meados dos anos 50, o certo é que nos meios intelectuais ingleses se fez sentir uma generalizada discriminação dos docentes universitários «vermelhos» e, no caso de Eric Hobsbawm, o seu primeiro livro, «O Aumento do Salário Operário», por ter sido considerado «tendencioso», isto é, escrito por um marxista, nem chegou a ser editado.
A ruptura entre Estaline e Tito, os processos de Moscovo, a denúncia, em 1956, do estalinismo por Khrushchev no XX Congresso do PC da URSS, as crises da Polónia e da Hungria e a invasão da Checoslováquia abalaram Eric Hobsbawm mas não o levaram a abandonar o PCB. «Engolindo as suas dúvidas», continuou a apoiar a única força internacionalista que supunha capaz de fazer frente ao imperialismo norte-americano e de garantir um auxílio eficaz aos movimentos de libertação que lutavam no Terceiro Mundo contra o colonialismo das potências europeias. Depois, em 1991, «como um navio gigantesco que avançasse em direcção a um banco de recifes, a União Soviética perdeu o rumo e navegou à deriva até à desintegração final. E acabou por ir ao fundo. Os vencidos, a curto e médio prazo, não eram só os povos da antiga URSS, mas os pobres de todo o mundo». Terá sido o fim do seu ideal comunista?
Sustenta o autor que nunca o preocupou, nem o preocupa, ser identificado como «Hobsbawm, o historiador marxista», etiqueta que traria hoje pendurada ao pescoço «como as frasqueiras que circulam depois de jantar pela sala de convívio dos professores dos “colleges”, para evitar que aqueles confundam o porto e o xerez. E garante que é tão necessário como no passado, ou mais ainda, chamar a atenção dos jovens historiadores para a importância da interpretação materialista da história, uma vez que, na actualidade, até as correntes da esquerda académica em voga tendem a desvalorizá-la, do mesmo modo que noutros tempos foi condenada e acusada de propaganda totalitária». A terminar: «Não devemos depor as armas, por mais ingratos que os tempos se mostrem. É necessário continuar a denunciar e a combater a injustiça social. Se nos limitarmos a deixá-lo entregue a si próprio, o mundo não se tornará automaticamente melhor.» Assim nos fala ainda hoje o sempre coerente, incómodo e «subversivo» Eric Hobsbawm, já à beira dos 90 anos. Longa vida!
Eric Hobsbawm, «Tempos Interessantes – Uma Vida no Século XX», Campo das Letras, 2005, 551 páginas