António Rego Chaves
Publicado na Alemanha em 1990, «Nietzsche – O Campo de Batalha» é um dos mais bem informados ensaios sobre a vida e a obra do genial filósofo. A principal virtude do estudo de Ernst Nolte (cujo nome andou nas bocas do mundo, por ocasião da célebre «querela dos historiadores», quando considerou o nazismo como uma consequência do comunismo) reside na sua capacidade de mostrar que o pensamento de Nietzsche está longe de ser redutível a um conjunto coerente de proposições – antes reflectindo uma vincada evolução, não poucas vezes contraditória, da sua mundividência.
Considera Ernst Nolte que a primeira época das reflexões de Nietzsche, marcada pelas relações com Richard Wagner, foi aquela em que escreveu «A Origem da Tragédia» (1871); segue-se a fase do Iluminismo, representada sobretudo por «Humano, Demasiado Humano» (1878); «Assim Falava Zaratustra» (1883-85) inaugura o último período da vida consciente do pensador, que termina em Janeiro de 1889, mais de onze anos antes da sua morte, ocorrida a 25 de Agosto de 1900.
Nietzsche, campo de batalha? Que quer isto dizer? Os títulos de doze dos capítulos da obra falam por si: «Antiguidade como paradigma e passado; Oriente e judaísmo; Platonismo, moral e cristianismo; Catolicismo, Renascimento, Reforma; Luzes e ciência; Revolução Francesa; Socialismo; Os alemães e o Reich alemão; Emancipação e modernidade como ‘degenerescência colectiva’ da Humanidade; Os bons europeus e o futuro do Super-homem; O conceito de destruição e o partido da vida; Vida e conhecimento, verdade e mentira». Sobre todos estes temas as ideias de Nietzsche não apontaram numa direcção única: «Trata-se de ver como forças e épocas da história europeia dilaceraram o indivíduo Nietzsche» – explica Nolte, que releva, por contraste, a coerência do sistema de Dühring, aliás hoje bem mais recordado devido a ter sido atacado por Engels do que pela sua obra. Quanto ao autor de «Crepúsculo dos Ídolos», desprezava a «esterilidade» de todos os sistemas filosóficos e declarava, peremptório como sempre: «Só se é fecundo pelo preço de se ser rico em contradições.»
Vejamos um exemplo das contradições de Nietzsche. Em 1864, afirma que os jesuítas têm uma influência negativa sobre os estudantes de Bona, pois pretendem expandir o catolicismo e «extirpar» o protestantismo. Onze anos passados, evocará «a nossa boa atmosfera protestante» e confessará: «Nunca senti mais fortemente do que agora a minha dependência interior em relação a Lutero», ao mesmo tempo que exprime a sua repulsa pelo catolicismo. Isso não o impedirá de, em «Aurora» (1881) opinar que «a poderosa beleza e a finura dos príncipes da Igreja [Católica] sempre demonstraram perante o povo a verdade da Igreja». Acentua Ernst Nolte: «Quando Nietzsche diz – em 1873 – que o protestantismo julgou ter purificado o cristianismo, mas que o fez evaporar e sair do mundo ao interiorizá-lo, está já muito afastado dos fundamentos do protestantismo.» E, em 1879, a ruptura dir-se-ia consumada: «Neste momento, reduzo a pertença religiosa a um simples gosto nacional diferente a norte e a sul: nós preferimos Lutero – enquanto homem – a Inácio de Loyola.» Em «A Gaia Ciência» (1881-1887) acrescentará que o êxito da Reforma de Lutero foi um sinal de que o norte da Europa ficou «para trás em relação ao sul».
Nem protestantismo, nem catolicismo. Dir-se-ia que só o Renascimento logra colher, à beira do fim, os aplausos de Nietzsche. Escreve no «Anticristo» (1888): «Vejo um espectáculo tão significativo e ao mesmo tempo tão admiravelmente paradoxal que todas as divindades do Olimpo teriam ocasião de romper num riso imortal – César Bórgia como Papa…. Compreendem-me? Muito bem. Tal teria sido a vitória pela qual somente hoje anseio – ter-se-ia suprimido o cristianismo! Que aconteceu? Um monge alemão, Lutero, veio para Roma. Este monge, com todos os instintos de vingança de um sacerdote infeliz no corpo, rebelou-se em Roma contra o Renascimento…» (…) «Lutero viu a corrupção no Papado, quando deveria ter-se apercebido do contrário: a antiga corrupção, o ‘peccatum originale’, o cristianismo, já não estava sentada na cadeira do Papa! Mas a vida! O triunfo da vida! Mas o grande sim a todas as coisas elevadas, belas e audazes!... E Lutero restabeleceu a Igreja: atacou-a… O Renascimento tornou-se num acontecimento sem sentido, num imenso em vão! Ah! Estes alemães, quanto já nos custaram! (…) «Se não se acabar com o cristianismo, os alemães é que terão a culpa…»
Não se infira desta longa transcrição, porém, que a rejeição do cristianismo por Nietzsche é o termo incontroverso da sua evolução em matéria de fé. Em boa verdade, tudo no filósofo é sempre mais complexo do que parece à primeira vista. Num poema juvenil, «Ao Deus Desconhecido», incluíra os seguintes versos, que apresentamos na tradução de Paulo Quintela: «Uma vez mais, antes de prosseguir/e de lançar avante o meu olhar/ergo para ti sozinho as minhas mãos/para ti em quem me refugio/a quem mais no fundo do meu peito/altares ergui solene/para que sempre/a tua voz de novo me chamasse.» É lícito duvidar, acompanhando aqui Ernst Nolte, de que quem tal texto concebeu possa um dia vir a perder por completo o emocionado impulso para o misticismo que tão intensamente nele ficaria expresso.
Uma última parte do livro, que termina com um cinzento capítulo intitulado «Benito Mussolini, marxista e nietzschiano», é consagrada ao tema «o nietzschianismo até 1914». Pena que o autor, para quem o ‘goulag’ teria provocado Auschwitz, assim «branqueando» a responsabilidade alemã nos extermínios levados a cabo pelos nazis, não tenha alargado a sua exposição à análise do uso e abuso que Mussolini e Hitler, estribados na indigna irmã de Nietzsche, ousaram fazer do seu pensamento. Mas essa é outra história, que nem todos os historiadores alemães estarão interessados em contar…
Ernst Nolte, «Nietzsche – Le champ de bataille», Bartillat, 2000, 312 páginas