António Rego Chaves
A questão da libertação dos animais não é nova e o «especiesismo» (vocábulo registado pelo Dicionário Houaiss, e não «especismo», o adoptado pelos tradutores) designa a opressão exercida pela espécie humana, não apenas sobre os animais de que se alimenta mas como sobre os que usa para o fabrico de cosméticos, obtenção de peles ou experiências biológicas e médicas. Já o fundador do utilitarismo, Jeremy Bentham (1748-1832), considerava que «pode chegar um dia em que o resto da criação animal possa adquirir os direitos que nunca deveriam ter-lhe tirado pela mão da tirania». E o filósofo inglês chamava a atenção para o facto incontestado de um cão adulto ser mais racional do que uma criança de um dia, um mês ou um ano, a fim de alicerçar a sua tese de que, se estes animais não humanos possuem, como os animais humanos, a capacidade de sofrer, e considerando que a dor deve ser evitada, todos os seres viventes têm o mesmo direito de não ser maltratados.
O australiano Peter Singer, hoje professor de Bioética em Princeton, «actualizou» esta linha de pensamento no seu livro «Animal Liberation» (1975), chegando a comparar a matança dos milhões de animais que todos os dias ingerimos com o Holocausto e «convertendo-se» ao vegetarianismo. Trabalhou quase trinta anos em ética prática e, no que a política social se refere, concluiu, sem debate: «No mundo actual, não vejo maneira de fugir à conclusão de que cada um de nós, se tiver mais do que aquilo de que precisa para satisfazer as suas necessidades essenciais, deve doar a riqueza excedentária de modo a ajudar as pessoas que permanecem numa pobreza tão extrema que coloca a sua vida em risco. É isso mesmo: estou a dizer-vos que não deveis comprar o carro novo, fazer o cruzeiro, redecorar a casa ou comprar o dispendioso fato novo. Afinal, um fato de mil dólares poderia salvar a vida de cinco crianças.»
Quanto a temas tão «quentes» como o aborto ou a eutanásia voluntária, embora os tenha abordado com particular veemência, os media parecem só se ter interessado pelas suas mais polémicas conclusões, ignorando a sólida – ainda que gélida até à desumanidade – onda de premissas que a elas o conduziram. Ao situar num mesmo plano esclavagismo, racismo e especiesismo, porém, dir-se-ia que o autor optava pela «provocação» pura e simples: de facto, só uma tentativa de «abanar» o seu auditório, incitando-o a reagir com um vigor muito próximo da violência, pela positiva ou pela negativa, poderia explicar que comparasse um escravo ou uma minoria negra com a vaca de que extraímos bifes ou com o frango que ingerimos à refeição. Os animais não humanos terão o direito de ser «libertados» – mas esse direito não pode ser equiparado ao que tem um escravo de ser livre ou um negro de não ser segregado. E, seja em que contexto for, revela-se intolerável esta sentença digna do médico nazi Joseph Mengele: «Quando tomamos em consideração os membros da nossa espécie desprovidos das características de um ser humano normal, deixamos de poder afirmar que as suas vidas devem sempre receber preferência em detrimento das dos outros animais.»
Depois, em catadupa, surgem-nos outras «razões» sem «coração» (no sentido em que Pascal utilizaria tais termos), como por exemplo: «A localização de um ser – dentro ou fora do útero – não é muito relevante para determinar se é errado matá-lo. Aqueles que protestam contra o aborto mas que comem regularmente carne de galinhas, de porcos e de vitelas, mostram apenas uma preocupação preconceituosa pela vida dos membros da nossa própria espécie. Porque, numa comparação justa de características morais relevantes, como a racionalidade, a consciência de si, a consciência da dor, a autonomia, o prazer, a dor, entre outros, a vitela, o porco e a tão ridicularizada galinha ficam muito à frente do feto em qualquer fase da gravidez – ao passo que, se fizermos a comparação com um feto de menos de três meses, um peixe apresentaria mais indícios de consciência. Proponho, então, que não concedamos mais valor à vida de um feto do que à vida de um animal não humano com um nível semelhante de racionalidade, consciência de si, consciência da dor, capacidade de sentir, etc. Já que nenhum feto é pessoa, nenhum feto tem o mesmo direito à vida do que uma pessoa.»
Os corolários vêm a seguir. Peter Singer sustenta, preto no branco, que «as razões para não matar pessoas não se aplicam a crianças recém-nascidas». Abre assim caminho à justificação – e, já agora, à legalização? – do infanticídio. Para o autor, a explicação é simples: «A mudança de atitude do Ocidente face ao infanticídio desde o tempo dos Romanos é, tal como a doutrina da santidade da vida humana de que faz parte, um produto do cristianismo. Talvez agora seja possível pensar sobre estes assuntos sem assumir a visão cristã do mundo, que impediu durante muito tempo qualquer reavaliação fundamental.» Mas será sensato deitar para o caixote do lixo da História todos os valores cristãos, alguns dos quais, aliás, têm muito menos a ver com Deus do que com a fraternidade entre os homens? Na verdade, Marx não foi tão longe – pelo contrário, o marxismo alberga profundas influências dos primitivos valores cristãos.
O demiurgo Peter Singer «reescreve» os Mandamentos: em vez de «dá o mesmo valor a toda a vida humana», «reconhece que o valor da vida humana varia»; em vez de «nunca tirar intencionalmente a vida a um inocente», «assume a responsabilidade pelas consequências das tuas decisões»; em vez de «nunca acabar com a própria vida e tentar sempre impedir que os outros acabem com a sua», «respeitar o desejo de viver ou de morrer de uma pessoa»; em vez de «crescei e multiplicai-vos», «traz crianças ao mundo apenas se forem desejadas»; em vez de «trata a vida humana sempre como mais preciosa do que qualquer vida não humana», «não discriminar com base na espécie». E integra nesta ética as suas opções anti-humanistas – ilegítimas mesmo à luz de uma visão ateísta da legalização da interrupção voluntária da gravidez – sobre especiesismo, aborto e infanticídio. Por isso dizemos: eis chegado o tempo da infâmia.
Peter Singer, «Escritos sobre uma Vida Ética», Dom Quixote, 2008, 359 páginas