Gato por lebre
António Rego Chaves
Receita de lebre: «Esfolar a lebre, dando um corte transversal na pele do lombo e puxando com força para um lado e outro. Retirar e rejeitar as vísceras, excepto o fígado, cortar aos pedaços, aproveitando algum sangue que ainda escorra. Dar a cabeça ao gato.» Há editores assim: esfolam o autor, cortam-no aqui e ali, puxam com toda a força a brasa à sua sardinha, aproveitam o que escorre ou lhes convém que escorra… e vendem, sem complexos, cabeça de gato ao leitor. «Gato por lebre», como sói dizer-se.
Tudo isto vem a propósito da mais recente edição em português d’ «A Vontade Poder», «obra de Friedrich Nietzsche» que não é bem de Friedrich Nietzsche. Na esteira do que há mais de um século, precisamente em 1906, cometeu a sua desvelada irmãzinha Elisabeth e um pouco por todo o mundo, traduzindo-se do alemão ou do inglês, se vai praticando o delito: aproveita-se o título já consagrado, não se pagam direitos a ninguém – e saem 1067 fragmentos prontos a ser servidos. Só que poucos sabiam quem os escreveu – e sobretudo quais Nietzsche não escreveu. Expliquemo-nos.
Como esclareceu o especialista na matéria e professor catedrático Christian Niemeyer, editor de um hoje imprescindível «Dicionário Nietzsche», desde 1896 que a irmã do filósofo pretendia «retocar» a imagem do criador de «Zaratustra» fazendo publicar o que considerava ser a sua obra principal – aliás contra a inalienável «autoridade do autor». Em 1901, depois da morte de Nietzsche, aparecem assim 483 fragmentos editados, surgindo em 1906 os referidos 1067. A manipulação dos textos foi de monta: decidiu- se «a favor de formulações claras e supostamente inteligíveis com facilidade», ao mesmo tempo que se «dispensava» o leitor de ter acesso à parte «analítico- reflexiva» bem como a passagens «que denegriam com demasiada clareza a religião, a igreja e o Reich». O descaro iria ainda mais longe: falsificar-se-iam cartas de Nietzsche para a irmã, onde se lhe atribuíram frases como esta: «Gosto cada vez mais do nosso novo imperador [Guilherme II]. Creio que [ele] até poderia compreender a Vontade de Poder como princípio.»
A esta luz, o infame aproveitamento de Nietzsche pelo nacional-socialismo não poderá surpreender, não obstante os inegáveis antigermanismo, anti-racismo e anti anti-semitismo (sic) amplamente evidenciados pelo filósofo. Basta recordar, com o professor espanhol Julio Quesada, a III Intempestiva para desfazer qualquer dúvida nesse sentido: «’Que é ser hoje em dia bom alemão? Todo o bom alemão começa por desalemanizar-se’ porque não se queria germanizar a Europa mas ‘europeizar a Alemanha’. Como? Acarinhando uma ideia de Europa como ‘fusão mista de culturas e raças’.»
Continuava Julio Quesada, num texto publicado por ocasião do centenário da morte de Nietzsche: «Ao editar sua irmã, casada com um anti-semita, ‘A Vontade de Poder’, desapareceram todos os fragmentos antinacionalistas, assim como a sua beligerância contra alguns autores anti-semitas que utilizavam o ‘Zaratustra’. Nesta selecção de textos se baseia o Nietzsche de Heidegger, ‘o verdadeiro Nietzsche’, como escreve Faye, hermenêutica pró-nazi cuja Vontade Poder como Arte quis fazer da autêntica e pura cultura alemã o martelo com que cinzelar um novo mundo. Mas Zaratustra nunca idolatrou o novo ídolo, o Estado ou o Reich, ‘a imoralidade organizada’, muito pelo contrário, dizia, ‘ali onde acaba o Estado, amigos meus, não vedes o arco iris e as pontes que levam ao homem superior?»
Escreve Detlev Piecha, catedrático da Universidade de Haia: «Desde o veredicto de G. Lukács de que Hitler foi ‘o executor testamentário de Nietzsche’ e A. Rosenberg subiu ‘para os seus ombros’, N. foi considerado como uma das fontes centrais de que supostamente se teria alimentado o nacional-socialismo, tanto no terreno da história das ideias como no ideológico.» (…) «A abordagem da crítica até agora encontrou a sua expressão mais explícita na afirmação de que, no processo de Nuremberga contra os principais criminosos de guerra, N. também estava sentado, ainda que de forma simbólica, no banco dos réus…» (…) «Conciliar o nazismo com N. – como tinha pretendido [Alfred] Baeumler em 1931 – degenera numa ‘caricatura’ da filosofia de N.’ e num ‘N. para principiantes’.»Aliás, o referido Alfred Bauemler, influente pedagogo do III Reich e ‘genuíno protofascista’, na expressão de Hans-Georg Gadamer, procurou politizar Nietzsche em diversos textos propagandísticos, incluindo num «epílogo» – não por acaso – a uma edição de 1930 d’ «A Vontade de Poder», obra que encarava como a «unidade e consequência do pensamento nietzschiano».
Nada ficou perdido de vez, porém. Depois da morte de Elisabeth Foerster-Nietzsche, a irmã do filósofo, os italianos Giorgio Colli e Mazzino Montinari desmontaram as tergiversações da senhora e promoveram a revisão e transcrição exacta de todos os fragmentos póstumos de Nietzsche. A edição alemã, entregue aos dois filólogos acima referidos, já se encontra traduzida em quatro gordos volumes para castelhano, pela mão da Tecnos.
O leitor interessado em não comprar gato por lebre poderá, pois, recorrer a um texto fidedigno (embora caro) sem ter de suportar os atropelos a que foi sujeita a edição dos fragmentos pela irmã de Nietzsche. Terá oportunidade de verificar que existe uma nítida coerência entre os últimos livros de Nietzsche («Assim Falava Zaratustra», «Para Além do Bem e do Mal», «A Genealogia da Moral» ou o «Anti-Cristo», datados dos anos 80 do século XIX) e os fragmentos póstumos de 1885-1889, sem a aparente ruptura que pode indiciar a obra agora publicada pela editora Alfanje (sic). Anote-se que esta não fornece qualquer advertência ao leitor que lhe permita perceber que está comprar um gato já mastigado em vez da lebre que desejaria saborear sem o indigesto tempero da irmãzinha de Nietzsche…
Friedrich Nietzsche, «A Vontade de Poder», Alfanje, 2012, 511 páginas