António Rego Chaves
No Livro da Primeira Classe pelo qual a minha geração aprendeu a ler havia um texto que definia, bem como muito poucos, a mentalidade que o salazarismo desejava inocular-nos. Intitulava-se «Respeitai as autoridades» e rezava assim: «O pai é a autoridade na família. Os filhos são obrigados a ter-lhe amor, respeito e obediência. O professor é a autoridade na escola. Todos os meninos devem obedecer às suas ordens e estar com atenção às suas lições. É Deus quem nos manda respeitar os superiores e obedecer às autoridades.» O pai era «Chefe», o professor era «Chefe», Salazar era «O Chefe da Revolução Nacional». E Deus, lá nas alturas, todos «chefiava», mesmo Salazar, que dele, segundo presumíamos, recebia ordens directas!
Mas a ditadura não falava neste tom apenas às crianças. Já em 1933 (o ano da Constituição em cuja ordem social estabelecida teríamos de declarar estar integrados, «com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas», se aspirássemos a ser funcionários públicos) Salazar, pela boca do ex-modernista, ex-futurista e ex-«enfant terrible» António Ferro, «alma» e director do Secretariado de Propaganda Nacional, queria «chefiar» os intelectuais. Ou seja, criava cinco prémios literários para que «a Política do Espírito – [melhor, a Chefia do Espírito]» – fosse, «em Portugal, uma realidade, e para que a nossa atmosfera intelectual» se animasse «de novos estímulos e de novos motivos de expansão…»
A prestigiada revista Presença foi célere e irónica na reacção. Escreveu então, pela pena de A. N. (o crítico literário Albano Nogueira?): «Nas condições do concurso fala-se em servir ‘uma intenção amplamente construtiva’ (para o romance); em ‘firme critério patriótico’ (para o livro de ‘evolução, análise ou rectificação histórica’); em ‘inspiração bem portuguesa e mesmo, de preferência, um alto sentido de exaltação nacionalista’ (para o livro de versos, poema ou poesia solta); em ‘espírito nacional e renovador’ (para o ensaio); e, finalmente, em ‘assunto de largo alcance nacional’ (para o artigo, reportagem ou inquérito)». Concluía o articulista: «No intuito honesto de ser úteis ao júri, propomos desde já os seguintes nomes, para que sejam eles os contemplados: Prémio Eça de Queiroz: o sr. Antero de Figueiredo; Prémio Alexandre Herculano: o sr. Alfredo Pimenta. Prémio Antero de Quental: o sr. António Corrêa de Oliveira; Prémio Ramalho Ortigão: o sr. João Ameal; Prémio António Enes: o sr. António Ferro.»
O galardão mais valioso – (vinte mil escudos, na época, não era coisa de pouca monta) – estava, porém, para vir: o Prémio Camões que, atribuído em anos alternados, distinguiria, a partir de 1937, «a melhor obra literária ou científica, de autor estrangeiro, publicada no estrangeiro, sobre Portugal, em língua portuguesa, francesa, inglesa, alemã, espanhola ou italiana.»
Em «Prémios do Espírito – Um Estudo sobre Prémios Literários do Secretariado de Propaganda Nacional do Estado Novo», o sociólogo Rui Pedro Pinto, depois de caracterizar o clima político em que nasceram os referidos prémios, socorrendo-se das investigações de historiadores como João Medina, António Costa Pinto, Rui Ramos, Fernando Rosas ou Reis Torgal, estuda em pormenor o «caso» de 1940, ano em que o Prémio Camões foi atribuído a John Gibbons (1895-1956), pelo livro «I Gathered no Moss» («Não Criei Musgo»). Trata-se de «uma tomada de posição ancorada no contexto ideológico de um regime cujos méritos visa abertamente salientar e propagandear.» Quanto ao título, é assim explicado: «Pedra rolante não cria musgo é a nossa tradução literal de ‘a rolling stone gathers no moss’. O significado seria ‘quem muda muito, de sítio ou de orientação de vida, não faz carreira, não enriquece’». Não poderia ser mais evidente a vívida preocupação do autor com o seu próprio bem-estar…
A obra é mais do que um mero panfleto de escritor sem recursos em busca de sustento: em boa verdade, constituiria, tal como o famoso «Decálogo» de João Ameal, «um compêndio ideológico do Estado Novo.» Refere o sociólogo, citando, primeiro, Reis Torgal e, logo a seguir, Fernando Rosas: «Constatamos uma evidente sobreposição de planos discursivos entre este registo do autor inglês e a ideologia salazarista da ‘valorização do ruralismo, traduzida na exaltação do viver das comunidades aldeãs, como se especialmente nestas se abrigassem os mais sólidos e admiráveis sentimentos de abnegação e de patriotismo, de autenticidade e de genuína pureza. A isto corresponde o antípoda duma vivência urbana que sobre si carrega a falsa grandeza de precárias magnificências’. Reconhecemos, facilmente, nas descrições que realiza dos camponeses de Coleja com quem contacta o arquétipo desse ‘chefe de família camponês, probo, devoto e ordeiro’ tido como o espelho do homem novo do salazarismo, o ser virtuoso, suporte da defesa e da reprodução da ‘ordem nova’.»
Curiosamente, o concurso destinado a premiar «a Aldeia mais Portuguesa de Portugal», organizado em 1938, ano em que Gibbons assenta arraiais na aldeia duriense de Coleja no intuito de escrever o texto que lhe valerá o Prémio Camões, visa o mesmo objectivo que o livro do inglês: apresentar um modelo nacional da vida em comunidade, tendo como alvo, quer a exportação de uma visão idílica do País, quer o «mercado» interno, para gáudio da boa consciência dos situacionistas satisfeitos com o recente derrube da República, a Censura, a polícia política e a paz dos cemitérios.
Com o livro de John Gibbons, publicado em 1939 e premiado no ano seguinte, ficaria a opinião internacional elucidada «sobre a nossa acção civilizadora», como desejavam o regime e o seu mais irrequieto e imaginativo «Chefe» da Propaganda, António Ferro? É duvidoso que assim sucedesse, até porque, em plena Guerra Mundial, o Planeta tinha, decerto, bem mais em que pensar do que na pobre aldeia duriense sem electricidade nem água canalizada descrita pelo inglês, persistente caçador de prémios literários e, tal como António Ferro, admirador incondicional dos «Chefes» Salazar e Mussolini.
Rui Pedro Pinto, «Prémios do Espírito», Imprensa de Ciências Sociais, 2008, 189 páginas