Por um Deus «débil»
António Rego Chaves
Se quisermos saber o que se passou com o pensamento filosófico europeu, desde Kant até aos nossos dias, este ensaio de Gianni Vattimo é talvez um dos melhores textos que podemos encontrar para nos esclarecer. Ao longo de três capítulos, por vezes densos, sempre voltados para a actualidade, impregnados de uma atenta vivência da nossa época, vai-nos enredando no que tem vindo a chamar «pensamento débil» – ou seja, na incapacidade de alcançarmos verdades absolutas, válidas para todo o sempre, alheias ao espaço onde as formulamos e ao tempo em que vivemos e as demandamos.
Existe uma boa razão para temermos todas as chamadas «verdades absolutas»: elas surgem sempre como uma ameaça de violência, uma ânsia de domínio cujo desfecho mais provável será a tentativa de subjugar, se necessário «manu militari», quem não aceita os ditames dos seus autoproclamados detentores. Aliás, como avisava Nietzsche, a metafísica é por natureza violenta, apropria-se dos «terrenos mais férteis», os dos primeiros princípios, para dominar todas as suas consequências. Basta evocar os abomináveis crimes cometidos em nome do cristianismo ou do islamismo para avalizar a razão de ser do solene aviso do filósofo.
Vattimo alerta para as pretensões dos que se assumem como detentores da verdade sobre os direitos humanos ou sobre a lei islâmica, envolvendo-se em «guerras justas» que não tomam em conta paradigmas culturais alheios. Exemplos como o de Bush exportando «democracia» por meio de bombas e o de Bin Laden pretendendo impor a «sharia» pelo terror são a prova provada do carácter literalmente explosivo de tais «verdades absolutas».
Há uma página de Nietzsche, reformulada pelo ensaísta, que poderá servir de introdução a tudo o que hoje se diz da hermenêutica (interpretação) e que amplamente justifica o relativismo e o historicismo do autor e de não poucos outros filósofos contemporâneos. Intitula-se ela «Como o ‘mundo verdadeiro’ acabou por se tornar numa fábula» e encontra-se inserida no «Crepúsculo dos Ídolos». Vattimo reescreve-a no seguintes termos, talvez numa procura de captar o espírito do texto mas desrespeitando a sua letra: «Primeiro existe a ideia do mundo verdadeiro, e era o mundo das ideias platónicas; depois o mundo verdadeiro converteu-se no mundo prometido aos justos depois da morte (o paraíso); depois converteu-se no mundo de Descartes que era já a evidência das ideias claras e distintas (mas só na minha mente: se existe Deus, que me protege do erro, aquelas também são verdadeiras); por fim, no positivismo, converteu-se no mundo das verdades verificadas por via experimental e portanto produzido numa experiência pelos próprios experimentadores (cada vez é mais difícil imaginar a experiência científica como a de alguém que olha para a natureza; em troca, estimula-a, irrita-a, quer fazer que se consigam certas coisas). Neste ponto, o mundo converteu-se numa história que vamos contando uns aos outros.»
Revelava o autor, na introdução: «A conclusão a que pretendo chegar é que o adeus à verdade é o início, e mesmo a base, da democracia.» (…) «A verdade não se encontra, constrói-se com o consenso e o respeito pela liberdade de cada um e das diferentes comunidades que convivem, sem confundir-se, numa sociedade livre.» Neste contexto surgirá como dificilmente ultrapassável uma das três ou cinco formulações do imperativo categórico por Kant em termos de respeito pelo outro, que é sobretudo o respeito pela finitude que a todos nos caracteriza: «considera a humanidade em ti e nos outros sempre como um fim, nunca como um simples meio».
Seguindo uma linha de pensamento que se fixa sobretudo em Nietzsche, Dilthey, Hegel, Marx, Heidegger e Gadamer, embora se detenha também em Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Michel Foucault e Richard Rorty, o filósofo, que se assume como cristão, aceita que «Deus morreu» (mas na cruz) e que chegámos ao «fim da metafísica». Escolhe a caridade, ou, usando um termo mais «moderno», a solidariedade: «Se lerdes com atenção os Evangelhos e os Padres da Igreja, no fim a única virtude continua a ser a caridade. Até a fé e a esperança mais cedo ou mais tarde desaparecerão. Santo Agostinho diz: ‘Ama e faz o que quiseres’.»
Se a filosofia, segundo Vattimo, chegou a um impasse, com a religião passa-se algo semelhante: parafraseando uma sentença mil vezes repetida de Heidegger – «Só um Deus ainda nos pode salvar» – escreve o autor: «Só um Deus relativista ainda nos pode salvar». «Não se trata – esclarece – apenas de um provocativo jogo de palavras.» (…) «Para mitigar o carácter escandaloso da frase, poderíamos transformar ‘relativista’ em ‘kenótico’ [esvaziado], um Deus mais explicitamente de acordo com a imagem que dele podemos ter hoje como cristãos.» O problema talvez resida, como acentuou o autor de «Ser e Tempo», em que «não se pode falar de religião salvo a partir de uma experiência existencial concreta da própria religião».
Contra a multissecular tirania metafísica, ideológica e política exercida pelas Igrejas, pelos seus «papas», pelos seus teólogos «oficiais», pelos seus torquemadas e pelos seus exércitos, e reivindicando para todos os homens o direito de interpretar e de participar na transformação do mundo, argumenta Gianni Vattimo: «Um Deus ‘diferente’ do ser metafísico já não pode ser o Deus da verdade definitiva e absoluta que não admite qualquer diversidade doutrinal. Por isso pode chamar-se um Deus ‘relativista’. Um Deus ‘débil’, se quisermos, que não desvela a nossa debilidade para se afirmar como luminoso, omnipotente, soberano, tremendo, de acordo com as características próprias da personagem ameaçante e asseguradora da religiosidade natural-metafísica. É à experiência de um Deus diferente deste a que são chamados os cristãos no mundo da multiplicidade explícita das culturas, a que já não pode contrapor-se, violando o preceito da caridade, a pretensão de pensar o divino como absoluto e como verdade.»
Gianni Vattimo, «Adiós a la verdad», Gedisa, 2010, 159 páginas