Tirando o sono ao mundo (Freud)

António Rego Chaves

Raras vezes teremos apreendido com tão grande evidência a probidade de um autor como ao lermos a «Autobiografia Intelectual» (1925) de Sigmund Freud e o texto que se lhe segue neste volume, intitulado «História do Movimento Psicanalítico» (1914). Nascido em 1856 e falecido em 1939, o fundador da psicanálise escandalizaria a Viena culta em 1886, ao proferir uma conferência sobre a histeria masculina na Sociedade dos Médicos. Sendo de ascendência judaica, mas incrédulo e admirador de Darwin, afirma, no entanto: «O conhecimento em tenra idade da história bíblica, assim que comecei a dominar a arte da leitura, marcou para sempre, como só muito mais tarde viria a perceber, o rumo dos meus interesses.»

Salienta Freud: «Ao defender ideias como a histeria masculina ou a possibilidade de gerar paralisias histéricas por efeito de sugestão fui relegado para um lugar na oposição». Mas o isolamento do grande inovador não ficaria por aqui. Atrevendo-se a pôr em causa a pretensa «inocência» das crianças, desencadearia a cólera dos seus contemporâneos: «Poucas teses da psicanálise foram tão unanimemente repudiadas ou suscitaram tanta indignação como a ideia de que a função sexual surge no início da vida e que se manifesta logo na infância por meio de fenómenos cuja importância não pode ser posta em causa. E, no entanto, nenhuma outra descoberta pode ser comprovada de modo tão fácil e tão completo.» (…) «É na verdade tão fácil constatar as actividades sexuais regulares das crianças que é com espanto que perguntamos como é que foi possível ignorar estes factos por tanto tempo e manter a lenda da infância assexual. A razão prende-se sem dúvida com a amnésia de grande parte dos adultos em relação à sua própria infância.» Para os «moralistas» vienenses da era vitoriana, era intolerável ouvir uma tão intensa série de «barbaridades»…

Mas não ficavam por aqui as «heresias» veiculadas pela nova ciência, como, por exemplo, ao abordar o tema da homossexualidade, que relacionava com a «bissexualidade inata» e com «a repercussão do primado fálico», sustentado que «a psicanálise pode demonstrar que todas as pessoas revelam indícios da escolha de um objecto homossexual». De facto, a psicanálise não se ocupava apenas de fenómenos patológicos, visava mais longe, abordava também a chamada «vida mental normal». Apresentava-se como «uma ciência da alma, nova e mais fundamental, que se revelará indispensável mesmo para entender a normalidade.» Convenhamos que não era pouco, mas o «pior» viria a seguir, o «complexo de Édipo» e a questão do incesto. O próprio Freud, numa carta dirigida ao seu íntimo amigo Wilhelm Fliess, em 1897, relataria a sua experiência: «Encontrei em mim, como em toda a parte, sentimentos amorosos em relação à minha mãe e de ciúme a respeito do meu pai, sentimentos esses que, penso eu, são comuns a todas as crianças, mesmo quando o seu aparecimento não é tão precoce quanto naquelas que se tornam histéricas.»

A culminar este processo de desafio às ideias geralmente aceitas pela sociedade vienense, Sigmund Freud passa a ocupar-se, em 1907, da psicologia da religião. Eis as suas palavras: «Reparei na surpreendente semelhança entre acções obsessivas e exercícios religiosos (rituais). Ainda sem conhecer as relações profundas entre ambas, tinha já anteriormente designado a neurose obsessiva como uma religião privada desfigurada, e a própria religião como uma neurose obsessiva universal, por assim dizer.» Num post-scriptum datado de 1935, recorda: «Após um longo desvio, um desvio que durou toda uma vida, pelas ciências naturais, pela medicina e pela psicoterapia, o meu interesse regressou àqueles problemas culturais por que em tempos um rapaz, ainda mal desperto para a reflexão, se apaixonara. No meu livro ‘Totem e Tabu’, no momento culminante do trabalho analítico, tinha tentado já aproveitar as novas descobertas da psicanálise para investigar as origens da religião e da moral. Dois ensaios posteriores [cujas recensões o leitor poderá consultar neste site], ‘O Futuro de uma Ilusão’ (1927) e ‘O Mal-Estar na Civilização’ (1930), seguiram também esse rumo.» (…) «No ‘Futuro de uma Ilusão’ a minha apreciação da religião fora essencialmente negativa; mais tarde encontrei uma fórmula que lhe faz mais justiça: o poder da religião assenta, com efeito, no seu conteúdo de verdade, só que esta verdade não é material, é histórica.»

Se é certo que Freud muito terá ficado a dever a Jean-Martin Charcot e a Josef Breuer (investigações sobre a hipnose e a histeria), se não é menos certo que contou com dois brilhantes discípulos, Alfred Adler e Carl Gustav Jung, que aliás acabaram por se arredar do mestre, a verdade é que desde cedo se habituara a prosseguir na maior das solidões o seu caminho científico. Seria erróneo, por outro lado, atribuir às geniais intuições de Schopenhauer sobre o recalcamento ou a certas especulações de Nietzsche alguma influência nas suas concepções: não era grande leitor de filósofos e as conclusões a que chegou ficaram a dever-se, sobretudo, à prática clínica.

Sigmund Freud sabia que, como Darwin ou Einstein, fazia parte daquele escasso grupo de cientistas «que perturbam o sono do mundo». Apesar de atacado por todos os lados por gente «normal», não caiu no ressentimento e deixou-nos bem explicado porquê. Eis a sua lúcida e irónica justificação: «A teoria psicanalítica permitia-me compreender este comportamento [dos que o atacavam] como sendo a consequência necessária dos pressupostos analíticos. Se a consciência dos pacientes repelia as minhas descobertas, por efeito de resistências afectivas, então as mesmas resistências manifestar-se-iam também em indivíduos saudáveis, assim que uma comunicação exterior os confrontasse com os seus recalcamentos.» (…) «Mas, ao passo que os pacientes podiam ser pressionados no sentido de reconhecerem e superarem as suas resistências, o mesmo não era possível em relação a indivíduos saudáveis – e esta era a única diferença.»

Freud, «Autobiografia Intelectual», Relógio D’Água, 2008, 148 páginas