António Rego Chaves
Na obra que consagrou ao «passado, presente e futuro» da religião da Tora, o grande teólogo Hans Küng, depois de acentuar que aquela, ao contrário do islamismo e do cristianismo, não constitui uma força multinacional que congrega centenas de milhões de pessoas, concluía que: 1) o judaísmo é e não é um Estado, pois apenas 3,3 milhões da totalidade dos crentes vivem em Israel; 2) é um povo e não é, porque constitui uma grandeza internacional inigualável e, de um ponto de vista político e cultural, numerosos judeus se consideram como nacionais de outros países e de modo algum se assumem como «israelitas no estrangeiro»; 3) é uma raça e não é, porque desde a Roma Antiga muitas pessoas provenientes de todas as tribos e povos imagináveis se tornaram judias pelo casamento ou por conversão; 4) é uma comunidade de língua e não é, porque são muitos os judeus que não falam nem o hebraico nem o ídiche; 5) é uma comunidade de religião, mas é menos do que isso, porque não são poucos os judeus – mesmo em Israel – que não crêem em Deus, e afirmam que o seu judaísmo nada tem a ver com a religião. Em suma: o judaísmo abrangeria apenas o universo dos que têm mãe judia e dos convertidos, não se identificando com qualquer Estado, povo, raça, comunidade de língua ou de religião.
No dizer do neokantiano e fundador da Escola de Marburgo Hermann Cohen (1842-1918), o povo de Israel ofereceu o monoteísmo à Humanidade – e é nessa dádiva que reside a sua essência. Salienta, por seu turno, o historiador Maurice-Ruben Hayoun que o exílio impôs aos judeus atitudes práticas e reacções que só se explicariam pela confrontação com um meio muitas vezes hostil, o do anti-semitismo. E acrescenta: «Esta realidade do exílio é capital para a compreensão do devir histórico do judaísmo, que não teria talvez tomado esta forma se não tivesse sido expulso do país que o viu nascer… A história intelectual do judaísmo demonstra-o amplamente: em cada uma das épocas do exílio se formou uma geração de pensadores, de teólogos e de filósofos que defendeu a religião ancestral contra os ataques ou as críticas das ideias modernas. Esta atitude queria-se fundadora da identidade e formadora de opinião; foi ela que veiculou a cristalização da identidade judaica através dos tempos.»
Parece ser facto incontroverso que a «consciência nacional» hebraica se forjou no Egipto, «na dura escola da escravatura». Foi a caminho do Sinai que os judeus «encontraram» o Deus único, acolheram o Decálogo e se fixaram o objectivo de alcançar a terra de Canaã, ou seja, a Palestina. Duas vezes seria destruído o Templo de Jerusalém, a primeira por Nabucodonosor, em 587 AC, a última por Roma, cerca do ano 70. No exílio da Babilónia, recordando a perda da Terra Prometida, o Salmo 137 interroga, num lamento de saudade: «Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor, estando numa terra estranha?» E é do contexto histórico do século I que emerge uma nova casta disputando a primazia aos sacerdotes, a dos «Discípulos dos Sábios» ou «Doutores das Escrituras», antepassados dos modernos rabis. Nasce então um judaísmo que coloca no centro das suas preocupações a Tora e os mandamentos. «As orações diárias substituíram os sacrifícios diários, a casa de estudo substituiu o Templo e a prática dos mandamentos tornou-se na razão de ser dos filhos de Israel. Os rabis haviam provocado uma verdadeira revolução cultural no seio do judaísmo: de uma religião de sacerdotes fizeram uma religião de rabis, isto é, uma religião que assenta inteiramente na exegese da Escritura.»
Pergunta o autor: «Que teria sido o judaísmo ou com que se teria ele parecido sem a queda do Estado judaico, consecutiva ao saque do Templo pelos Romanos? Teríamos conhecido o mesmo rigor em matéria de casamento endogâmico e de interditos alimentares – cujo objectivo declarado foi sempre o de separar os judeus das outras famílias humanas –, se os Discípulos dos Sábios não tivessem substituído a casta sacerdotal e se a prática religiosa concreta não tivesse relegado para último plano as leis sacrificiais?»
Não há resposta para tais perguntas, mas a verdade é que, na Antiguidade, as brutais judeofobias sírio-palestiniana, egípcia e romana assentaram em duas acusações principais: «a xenofobia (os judeus só gostam deles próprios) e a misantropia (os seus laços religiosos fazem com que odeiem a totalidade do género humano)». Será necessário lembrar as perseguições muçulmanas no Oriente e na África do Norte, a Cruzada de 1096, a Inquisição na Península Ibérica, os pogrons na Rússia czarista, o gueto de Roma ou as câmaras de gás em Auschwitz para demonstrar que o antijudaísmo e o chamado anti-semitismo não podem ser explicados – e muito menos justificados – pela alegada intolerância do judaísmo em relação às outras religiões, pelo pretenso «deicídio», por uma recusa de renunciar à identidade cultural, pela prática da usura? Acresce que o termo anti-semitismo, inventado pelo publicista Wilhelm Marr com base nos mitos arianistas do «Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas», de Gobineau, não obtém hoje qualquer sustentação científica nos campos da biologia e da linguística. Por outro lado, sabe-se quanto os nacionalismos e os clericalismos, no século XIX, exploraram em seu favor o «ódio ao judeu». Neste contexto, o famoso «caso Dreyfus» foi, decerto, exemplar na sua obscena intolerância.
Constitui obviamente outra questão a relação hoje existente entre o anti-semitismo e o anti-sionismo que rejeita liminarmente quaisquer matizes racistas ou colonialistas da política israelita, nomeadamente em relação aos palestinianos. O que nada adianta no esclarecimento da opinião pública é alvitrar, como «decretou» o falecido historiador Jacques Madaule, que o anti-semitismo nazi foi substituído pelo anti-sionismo, tal como, antes, o antijudaísmo cristão fora substituído pelo anti-semitismo nazi. Na verdade, queira ou não queira a vasta «família» sionista, proliferam por todo o mundo, mesmo em Israel, judeus e não-judeus que, condenando sem quaisquer ambiguidades o antijudaísmo e o anti-semitismo, se mantêm firmemente anti-sionistas…
Maurice-Ruben Hayoun, «O Judaísmo», Teorema, 2007, 171 páginas