António Rego Chaves
Thomas De Quincey (1785-1859), intelectual de cultura enciclopédica e amigo dos poetas românticos Wordsworth e Coleridge, tornou-se conhecido sobretudo depois da publicação de «Confissões de um Comedor de Ópio Inglês» (livro «incomparável» para Baudelaire, «prodigioso» no dizer de Melville, «sublime» na opinião de Philippe Sollers) e de «O Assassínio Considerado como uma das Belas-Artes», paradigmático exercício de humor negro. Os catorze volumes das suas obras completas incluem dezenas de escritos autobiográficos, ensaios históricos e estudos literários ou estéticos.
«Os Últimos Dias de Immanuel Kant» não revelam apenas o trabalho de um erudito que se documentou estudando as «Memórias» de Wasianski, Borowski e Jachmann, publicadas em 1804, logo a seguir à morte do filósofo da «Crítica da Razão Pura», prestes a completar 80 anos. Constituem, acima de tudo, uma observação quase clínica – a um tempo marcada pela proximidade e pela distância, por contida compaixão e por subtil ironia, por fria revolta e por melancólica resignação –, da velhice, da degradação do corpo e da mente, da agonia humana. Um espírito brilhante, dos mais extraordinários que o pensamento europeu produziu, debate-se durante meses e meses com a tortura de arrastar um corpo que se recusa a obedecer à vontade que antes o comandava e com a humilhação de se aperceber do imparável declínio da inteligência que, associada a uma sólida e bem conhecida integridade moral, o tornara venerado por muitos dos mais ilustres dos seus contemporâneos. E anseia pela chegada da morte.
Tinha decorrido metódica, programada desde o princípio até ao fim do dia, organizada hora a hora, a vida do catedrático de Königsberg, quando as doenças associadas à senectude começaram a afectá-lo. A memória do presente imediato traía-o, debilitava-se-lhe a capacidade de teorizar, era assaltado cada vez com maior frequência por persistentes cefaleias. Abandonado pela clareza e pela agilidade mental, perdida a exacta noção do tempo, os seus diários e pontuais passeios a pé começaram a ser raros e curtos. Acabariam por ser suprimidos devido à fraqueza das pernas, que lhe provocava quedas cada vez mais frequentes. O corpo, magro e débil, um invencível cansaço físico e mental, a lenta perda das capacidades auditivas e visuais, tudo o incitava já a não se apegar à vida. «À medida que o Inverno de 1802-1803 se aproximava, começou a queixar-se mais do que era costume de um doença do estômago que médico nenhum conseguira tratar ou, sequer, diagnosticar. O Inverno foi passado em sofrimento; Kant, cansado de viver, ansiava pela libertação.» E desabafa: «Já não tenho serventia para o mundo e sou um fardo para mim mesmo.»
Nos finais do Inverno de 1803, começou a queixar-se de ter pesadelos, alguns deles horríveis, que o faziam acordar em sobressalto. «Às vezes, melodias que ouvira quando criança nas ruas de Königsberg ecoavam dolorosamente nos seus ouvidos, e nenhum esforço de abstracção era suficiente para as afastar. Isso fazia com que as suas insónias se prolongassem de forma insuportável.» Sonhos aterradores, povoados por fantasmas até então ocultos no cérebro, agitam agora as suas noites. Adverte num caderno de notas: «Proibido abandonar-se ao pânico das trevas».
Já nem consegue recordar-se das letras que compõem o seu nome. Fecha-se num desesperado mutismo ou articula palavras sem nexo e cada vez com maior dificuldade. «Tombado na sua cadeira como uma massa informe», é raro reconhecer as pessoas que se encontram à volta. Mergulha numa existência quase vegetativa, o olhar imóvel, perdido em si mesmo, como se as suas faculdades mentais tivessem sido devoradas por um fogo impiedoso e para sempre reduzidas a cinzas.
Tem a certeza de que a vida o vai abandonar. Extenuado, ausente do que foi, ainda encontra ânimo para pedir um beijo de consolo ao amigo que o acompanhou nos aviltantes dias da agonia. É então, só então, depois de recebido este derradeiro testemunho de fraternidade, que, na madrugada de 12 de Fevereiro de 1804, pronuncia as suas últimas palavras: «Já chega!»
O moribundo bebera até à última gota o cálice da amargura.
Thomas De Quincey, «Os Últimos Dias de Immanuel Kant», Relógio d’Água, 2003, 92 páginas