António Rego Chaves
No quinquagésimo aniversário da morte de Albert Camus, ocorrida num acidente de viação em 4 de Janeiro de 1960, eis disponíveis os três volumes dos seus «Carnets». Os dois primeiros, há longos anos esgotados, foram agora reeditados pela Gallimard. Lamenta-se que em Portugal não pareça estar à vista idêntica iniciativa, pois os «Cadernos» publicados pela «Livros do Brasil», na colecção «Miniatura», em tradução de Gina de Freitas, António Quadros e António Ramos Rosa, já não se encontram no mercado e abrangem apenas os dois primeiros tomos dados à estampa em França.
O grande interesse desde III volume dos «Carnets», editado pela primeira vez em 1989, não reside apenas no facto de registar algumas das meditações do escritor nos últimos anos da sua vida: de facto, tendo sido redigido entre Março de 1951 e Dezembro de 1959, permite-nos também lançar um olhar sobre a intelectualidade francesa no período em causa, marcada por intensa «guerra» ideológica entre capitalismo e socialismo.
É em 1951 que Camus lança «O Homem Revoltado», obra que originaria um temporal desfeito no mundo cultural parisiense. Depois de «O Mito de Sísifo», em geral bem acolhido pela crítica, o novo ensaio do futuro Nobel da Literatura vinha reformular, preto no branco, a alternativa que dominava a época: escolher entre o «modelo» dos Estados Unidos e o da União Soviética, dado que as duas superpotências rivais impossibilitavam, na prática, o surgimento de qualquer «terceira via». A questão era, pois, a do alinhamento da Europa Ocidental: ou Truman ou Estaline, ou McCarthy ou Beria, ou uma pretensa liberdade sem justiça social ou uma pretensa justiça social sem liberdade. Os factos viriam a demonstrar que até os países do chamado «socialismo democrático», tutelados pelo poderio económico e militar dos Estados Unidos, nunca se poderiam aliar à União Soviética.
Albert Camus está então já afastado da «intelligentsia» de esquerda, mesmo da que não se encontra inscrita no Partido Comunista Francês. E é precisamente da revista «Les Temps Modernes», na qual procedera a uma pré-publicação de «O Homem Revoltado», com o título «Nietzsche e o niilismo», que partem os ataques mais virulentos: de Francis Jeanson, primeiro; e, a seguir, depois da resposta do visado, do próprio Sartre. «Meter no mesmo saco» o fascismo e o comunismo seria bem tolerado por alguma direita dita «civilizada» – não por Raymond Aron –, mas era inadmissível para os marxistas, mesmo para alguém tão pouco «ortodoxo» como o autor de «O Ser e o Nada». Camus condenou-se ou foi condenado, pois, ao isolamento – isolamento que se acentuaria com as suas singulares tomadas de posição sobre a autodeterminação e independência da Argélia.
Os «Carnets» reflectem, neste contexto, a solidão do ex-comunista, agora assumido anticomunista – enquanto Jean-Paul Sartre sustentaria que «todo o anticomunista é um cão». Albert Camus procura afastar-se, centrar-se, concentrar-se, «fechar-se na sua concha»: «Nunca atacar ninguém, sobretudo nos escritos. O tempo das críticas e das polémicas acabou-se.» (…) «A minha solidão regurgita de sombras e de obras que não pertencem senão a mim.» Mas não lhe é fácil ignorar o mundo à sua volta, a ele que tanto gosta de conviver. E os remoques não têm fim: «É o levantamento em massa dos tenebriões. Leio no Littré: ‘Tenebrião’: 1) Amigo das trevas intelectuais. 2) Género de coleópteros de que uma espécie, no estado de larva, vive na farinha. Também se diz barata.» (À margem: Cândido de Figueiredo regista o vocábulo «tenebrião». O Lello e a Academia, também; mas todos apenas na segunda acepção. É tempo de o usarmos na primeira).
Convicto de que tem razão contra os que procuram ou negar ou explicar ou justificar os erros do «socialismo real», escreve: «Somos muito poucos. Mas a verdade passa à frente da eficácia.» Atacado desde a extrema-direita até à extrema-esquerda, comenta: «Paris é uma selva, e as feras são remelosas.» Mas a mágoa deriva sobretudo das críticas recebidas da parte dos «progressistas»: «Arrivistas do espírito revolucionário, novos-ricos e fariseus da justiça. Sartre, o homem e o espírito, desleal.» (…) «A única desculpa deles está na terrível época. Alguma coisa neles, para acabar, aspira à servidão. Sonharam ir por algum nobre caminho, cheio de pensamentos. Mas não há estrada real para a servidão. Há a batota, o insulto, a denúncia do irmão. Depois disso, os trinta dinheiros.» As feridas, fica à vista, estavam longe de ter sarado, permanecerão abertas até ao fim.
A «questão de Deus» não é cultivada por Albert Camus, se é que para ele existiu uma «questão de Deus». Diz-nos: «Leio muitas vezes que sou ateu, ouço falar do meu ateísmo. Ora essas palavras não me dizem nada, não têm sentido para mim. Não creio em Deus e não sou ateu.» Depois: «Sou daqueles que Pascal perturba e não converte. Pascal, o maior de todos, ontem e hoje.» Sublinha: «No Antigo Testamento Deus nada diz, são os vivos quem lhe serve de vocábulo. É nisso que não deixei de amar o que havia de sagrado neste mundo.» Uma última peça para este «puzzle»: «Cumplicidade profunda do marxismo e do cristianismo. Eis por que sou contra os dois.» Contra? Porquê contra os dois – e não a favor dos dois?
As páginas admiráveis e luminosas deste livro são, a nosso ver, para além das que Camus consagra a Nietzsche, a Tolstoi, a Dostoievski, aquelas que escreve quando visita a Itália e, sobretudo, a Grécia. Páginas arrancadas ao mais profundo da sua vivência mediterrânica, a ele para quem o azul do céu, o mar e o sol da Argélia natal parecem renascer, a cada passo, em cada ilha, em cada antigo templo, em cada escultura. Pressentimo-lo exilado, esmagado, sufocado, se e quando nada lhe faz lembrar a paisagem familiar: «Paris onde o sol é um luxo, onde morrer custa os olhos da cara, onde não há árvores sem conta bancária.» Paris, sobretudo, cidade de tenebriões…
Albert Camus, Carnets III, Gallimard, 1989, 303 páginas