António Rego Chaves
A maioria dos textos surgidos por ocasião do 20.º aniversário da morte do Padre Manuel Antunes, ocorrida em 1985, apresentou-o como um eminente e enciclopédico homem de cultura. Ninguém contestará tal asserção. Outra tendência consistiu em considerar «intocáveis» cada uma das suas lições, abdicando de qualquer sentido crítico em relação ao seu conteúdo. Será esta uma forma de honrar um intelectual?
Esclareço, para que seja bem entendido: foi ele o meu único Mestre na Faculdade de Letras de Lisboa, onde a Filosofia se encontrava entregue, nos anos 60, a um ínfimo número de bons professores e a um lastimável «plantel» de papagueadores de banalidades decalcadas em bafientos compêndios de origem duvidosa. Ainda que não esqueça o brilho de Oswaldo Market, que me soube incutir a paixão por Kant, o calor da intensa chama que tudo iluminava em seu redor e o esplendor da palavra mágica, fossem eles aplicados a um Heraclito, a um Homero ou a um Sócrates, esses só os encontrei nas inolvidáveis aulas de História da Cultura Clássica de Manuel Antunes.
Dito isto, há que questionar o tão suspeito quanto engravatado panegírico do Mestre, que hoje parece ser de bom-tom entre gregos que o admiravam e troianos que o amesquinhavam. E é relendo este fascinante volume da sua «Obra Completa» feito publicar pelo nosso «ministério-sombra» da Cultura, a Fundação Gulbenkian, que nos é lícito esboçar um primeiro balanço equilibrado da sua extraordinária actividade intelectual. Anoto a exiguidade da tiragem de 500 exemplares, ainda que sem me atrever a criticar seja quem for, pois decerto se tentou prever, nos bastidores da Gulbenkian, quantos excêntricos estariam interessados em consumir um pensar tão pouco «light» como o de Manuel Antunes. Sinal dos tempos, comentaria ele, decerto esboçando um tímido sorriso resignado e aflautando um pouco a voz, enquanto espetaria o afilado indicador na direcção dos Céus. Repugnante sintoma de profundo défice do espírito, acrescento eu, indignado, à guisa de homenagem ao meu Mestre.
Saboreiem-se os seus textos sobre a (não) existência de filosofias nacionais, sobre a «reinterpretação de Marx», sobre «tomismo e marxismo». Saliente-se, para que conste urbi et orbi, que nesta conferência, proferida no Seminário dos Olivais em 1957 frente a D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Antunes teve a coragem física e moral de declarar: «Se o marxismo continua a ser ainda hoje, apesar da velhice do sistema e do endurecimento de formas e estruturas, um pesadelo sobre todos nós, devemos lembrar-nos que ele foi também, até certo ponto, a heresia necessária. Pela justiça social que traímos, pela caridade que reduzimos às ‘boas obras’ sem entranhas fraternas e sem amor, pela teologia da história que deixámos de apresentar, viva, pela filosofia do trabalho que não desenvolvemos, ele falou. Falou uma linguagem violenta, unilateral e equivocada, mas falou. A nós compete recolher esse grito porque antes de ser dele foi nosso.» Tudo isto, palavra a palavra, sílaba a sílaba, nas barbas de um ilustre purpurado cúmplice de Salazar, da Censura e da Pide...
Atente-se no arrebatador ensaio «Actualidade de Pascal», quase diríamos que, como o ‘Memorial’ e os ‘Pensamentos’, escrito com sangue, e no qual se releva a «distância ‘infinitamente infinita’ das três ordens em que se move o existente humano: a dos corpos, dos espíritos e da caridade» – mas observe-se também que, a seguir, em nota de rodapé, Manuel Antunes, jesuíta, não se abstém de depreciar «As Provinciais», aliás colocadas no «Index» e símbolo do antijesuitismo de Port-Royal, escudando-se na autoridade de «homens tão independentes» (?!) como Romano Guardini, Jacques Chevalier e Chateaubriand. Percorra-se o cuidadoso estudo «Hume em Perspectiva», sempre escrupulosamente documentado – mas saliente-se que nem uma só vez, ao longo de mais de 20 páginas, o autor fala do deísmo do escocês que despertou Kant do seu longo «sono dogmático», preferindo tomá-lo por «agnóstico». Leia-se o luminoso texto dedicado a Kierkegaard – mas anote-se a tentação apologética de situar o dinamarquês a meia distância entre «protestantismo real» e «catolicismo virtual». Fixe-se a rasgada vénia ao obscurantismo do Concílio Vaticano I, no artigo «Russell e o Humanismo Científico». Arquive-se a cândida afirmação segundo a qual se verificou uma «desilusão de Heidegger pelo nacional-socialismo, em 1934, depois de uma adesão sincera, no ano anterior». Enfim, registe-se a indigesta insinuação de que o humanismo marxista de Merleau-Ponty poderia apelar para uma dimensão metafísica.
Não, as lições do Padre Manuel Antunes não são todas «intocáveis», porque, para além de não haver seres humanos infalíveis, se encontrava inserido em rígidas estruturas limitadoras da plena autonomia dos indivíduos que as integravam. Há que encará-lo, pois, não só no contexto da ditadura cultural que nos subjugou até 25 de Abril de 1974, como no da hierarquia anti-democrática da Companhia de Jesus, que foi a um tempo sua tábua de salvação e seu cárcere intelectual, como mesmo no dos mesquinhos «lobbies» da Faculdade de Letras pelos quais tão maltratado foi, para entender por inteiro o autor e a sua obra. Porque, como o próprio afirmou a propósito de David Hume, curiosamente alguém que temeu e renunciou a publicar em vida um dos seus textos capitais, os «Diálogos sobre a Religião Natural», «pese embora aos estruturalistas de vários bordos e obediências, não existe obra sem autor. A consideração ‘del hombre de carne y hueso’, que Unamuno exigia com força e, por vezes, com clamor, se não é factor determinante para a compreensão da obra, é elemento que, quando exista, não é lícito desprezar. Sem riscos de queda no biográfico, no anedótico, no insignificante, no positivisticamente barato.» Sem o menor risco de tal queda, será bom não esquecermos nunca de onde veio, como singrou e onde foi forçado a subsistir esse humilde gigante da cultura portuguesa do século XX que foi Manuel Antunes, meu querido Mestre.
Padre Manuel Antunes, «Obra Completa – Tomo I – Theoria: Cultura e Civilização – Volume III – Filosofia da Cultura», Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, 630 páginas