António Rego Chaves
Estamos perante dois acontecimentos históricos: 1) a primeira publicação em Portugal de uma tradução do célebre «Sidereus Nuncius», de Galileu; 2) o facto de essa primeira publicação se realizar nada menos do que 400 (quatrocentos) anos depois da edição em Veneza. Eis, por uma vez, o País cultural a caminhar na direcção da Europa, não da savana africana – e «só» com quatro séculos de atraso. Graças ao Serviço de Educação e Bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian – o que não surpreenderá ninguém, mas é inequívoco sinal das constantes e frequentes distracções governamentais.
Galileu Galilei (1564-1642) ingressou na história da cultura ocidental por múltiplas razões, a menos notória das quais não reside na circunstância de ter sido alvo de continuadas perseguições da Igreja Romana, por ter posto em xeque a Bíblia. Mas a sua contribuição para o método científico, tal como hoje o concebemos, foi decisiva: no dizer de Kant, ele percebeu que «a razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos» e que essa mesma razão «deve forçar a natureza a responder às suas interrogações, em vez de se deixar guiar por esta.» Na síntese de Rodolfo Mondolfo: «Galileu diferencia-se ao mesmo tempo de Bacon e Descartes, representantes, um, do empirismo indutivo e, o outro, do racionalismo dedutivo, superando ambos pelo seu método experimental, que une a observação à demonstração, a experiência à necessidade racional.»
Geómetra, físico, astrónomo, desde 1597 que Galileu se mostra contrário ao geocentrismo de Ptolomeu, inclinando-se para o heliocentrismo de Copérnico. Em 1609 constrói um instrumento de óptica – a «luneta» a que mais tarde se chamaria telescópio – que lhe permitiria observar os astros. Como resultado das suas investigações, escreve «O Mensageiro Celeste». O filósofo Campanella opina então que, depois de tal texto, «toda a ciência deve renovar-se», enquanto o astrónomo Kepler compara Galileu com um novo Colombo, ainda que tomando o cuidado de acentuar que o toscano não inventara o telescópio, nem fora o primeiro a falar da natureza rugosa da superfície lunar, nem o único a referir que havia mais estrelas nos céus.
Segundo afirma o cientista Henrique Leitão, no cuidado estudo introdutório que elaborou para a edição portuguesa, «se o epíteto ‘revolucionário’ tem algum sentido em história da ciência, então deve ser usado para classificar, talvez mais do que qualquer outra obra», o «Sidereus Nuncius» de Galileu. E prossegue: «É difícil encontrar na história científica um outro exemplo que se lhe compare, quer na estrondosa comoção que causou imediatamente, quer nas dramáticas consequências a que deu origem.» Na verdade, Galileu, como sublinha Sven Dupré na nota de abertura, anuncia «várias descobertas, cada uma mais surpreendente que a anterior: a superfície da Lua ser semelhante à da Terra, as inumeráveis estrelas de que é formada a Via Láctea, os quatro satélites em torno de Júpiter».
«Pensado deliberadamente para causar sensação», o opúsculo assinado por Galileu possui um «tom claramente jornalístico» (Henrique Leitão). Não admira, pois, que o tradutor para castelhano adoptasse o título «La Gaceta Sideral», tendo a sua homóloga francesa posto a hipótese de utilizar o título «Le Courier des Astres», mas optado por «Le Messager Céleste».
Na sua obra, Galileu lograria impor a ideia segundo a qual a Terra é apenas mais um planeta e que, portanto, se move e não ocupa o centro do universo, retirando credibilidade a um importante argumento apresentado pelo astrónomo dinamarquês Tycho Brahe contra o sistema de Copérnico. Acentua Henrique Leitão: «Os historiadores concordam em geral que a descoberta dos satélites de Júpiter, esvaziando assim a objecção que pretendia negar o movimento da Terra pela impossibilidade de a Lua a acompanhar, foi um facto decisivo na conversão de Galileu a um copernicianismo explícito e militante.» Ou seja: usando a comparação entre Júpiter com os seus satélites, e a Terra com a Lua, Galileu «calava» Brahe. Com efeito, a concepção deste mantinha a Terra imóvel no centro do universo e o Sol rodando em torno dela, mas todos os planetas orbitavam em volta do Sol. Do ponto de vista da Igreja Romana, uma vez posto de parte em definitivo o sistema de Ptolomeu, era a solução quase «perfeita».
A Companhia de Jesus – na época, autêntica «internacional» científica, que até envolvia Portugal, a China, a Índia – e o «Collegio Romano» estudaram e debateram longamente as investigações astronómicas de Galileu. Em 1620, viria o veredicto, pela pena de Giuseppe Bancani: a adopção oficial, pelos jesuítas, do sistema de Tycho Brahe. Segundo refere Henrique Leitão, «a personalidade a quem mais se ficou devendo a introdução das ideias de Galileu e do telescópio no nosso país foi o padre Giovanni Paolo Lembo, que fora o principal responsável pela construção de telescópios no ‘Collegio Romano’ e que confirmara as observações de Galileu no importante relatório ao cardeal Bellarmino em Abril de 1611.» Mas a sua estada entre nós, no Colégio de Santo Antão, onde leccionou na «Aula da Esfera», foi curta: de 1615 a 1617, tendo regressado a Itália «por motivos de saúde». Mais tarde, viria Cristovam Borri, também jesuíta italiano, que – narrava em 1955 António José Saraiva na sua «História da Cultura em Portugal» – «em Lisboa e Coimbra ensinou Matemática e Cosmografia, entre 1627 e 1631, dando a conhecer Copérnico, Kepler e Galileu, o que parece ter dado motivo a que saísse de Portugal e da própria Companhia».
Nada de surpreendente. Como fez notar um historiador muito próximo da Companhia de Jesus, António Alberto Banha de Andrade, os inacianos, «fiéis servidores da Igreja Católica, aproveitam o que há de bom no seu século, mas fustigam os desvarios e contrapõem-lhes a sã doutrina, revestida de roupagem nova, atraente, ao gosto da época». No caso, o novo pronto-a-vestir encontrara um nome já feito e bem-sonante: Tycho Brahe.
Galileu Galilei, «O Mensageiro das Estrelas», Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, 287 páginas