Corria o ano de 1924 quando Miguel de Unamuno foi desterrado por, em alguns virulentos artigos, ter criticado a ditadura do general Primo de Rivera. Em Paris, bem longe de Salamanca, traduzido pelo escritor e crítico de artes plásticas Jean Cassou, de quem era amigo, surgirá, em 1925, pela primeira vez e em língua francesa, «A Agonia do Cristianismo», ensaio que poderá ser considerado, como o próprio autor sugeriu, «uma segunda parte» da sua obra-prima no terreno filosófico, «Do Sentimento Trágico da Vida».
O termo «agonia» significa, no livro de que nos ocupamos, «confronto», «conflito», «luta» – e não, como um leitor desprevenido poderia supor, o estádio final de decadência que precede a morte. Um agonizante não é aqui alguém que está prestes a morrer, um moribundo – pois «pode-se morrer sem agonia e pode-se viver, e muitos anos, nela e dela». (…) «Agoniza quem vive a lutar, a lutar contra a própria vida. E contra a morte.» Em boa verdade, para o poeta de «El Cristo de Velázquez», ser um verdadeiro cristão significa sempre travar uma luta sem tréguas contra o dogmatismo, a falsificação dos valores espirituais, o imobilismo. Unamuno mantém-se visceralmente anti-cartesiano, sempre fiel à sua «razão cardíaca» e às suas mais sagradas obsessões. «Homem de carne e osso» que considerara ser sua missão combater «a fé na afirmação, a fé na negação e a fé na abstenção, e isto por fé na própria fé», não quer abandonar à sua preguiçosa modorra mental «todos os que se resignam, seja ao catolicismo, seja ao racionalismo, seja ao agnosticismo». Exige-lhes, sem excepção, que vivam «inquietos e ofegantes». Avisa os incautos: «Uma fé que não duvida é uma fé morta.» E confessa-se: «Afirmo, creio, como poeta, como criador, olhando para o passado, para a recordação; nego, descreio, como raciocinador, como cidadão, olhando para o presente, e duvido, luto, agonizo como homem, como cristão, olhando para o futuro irrealizável, para a eternidade.»
Acusara já a Igreja Católica de conservar a verdade cristã apenas para os simples, ao mesmo tempo que a deixava morrer para os homens de cultura. Roma descristianizara os intelectuais «ao querer obrigá-los a aceitar uma filosofia do século XIII» (o tomismo). O catolicismo tornara-se racionalista e matara a mística. De forma lapidar, o corajoso pensador basco definira o seu repúdio pela autoritária institucionalização da fé: «O profundo mal do catolicismo é o racionalismo. Quer-se chegar a Deus com o raciocínio, e com o raciocínio só se chega à ideia de Deus, não ao próprio Deus…» (…) «Eu não sou católico, sou cristão.»
Para Unamuno, «o cristianismo é algo individual e incomunicável» – e por isso agoniza em cada um de nós. Temos o direito e o dever de o pensar pela própria cabeça e de exercer a liberdade pessoal de o questionar, porque só a dúvida é fecunda perante a aridez do imobilismo das «verdades eternas». E chegamos ao tema fulcral de toda a meditação do poeta e do místico, «a esperança desesperada da ressurreição da carne», porque «o cristianismo, a cristandade, foi uma preparação para a morte e para a ressurreição, para a vida eterna». A letra, o dogma e o decreto querem a substituir-se ao espírito, à liberdade e à dúvida. «Ou a ressurreição da carne ou a imortalidade da alma, ou o verbo ou a letra, ou o Evangelho ou a Bíblia» – eis os dilemas deste Jacob e deste Job dos inícios do século XX. «O espírito, que é palavra, que é verbo, que é tradição oral, vivifica; mas a letra, que é o livro, mata.»
Céptico, sempre; dogmático, nunca: «O céptico estuda para ver que solução poderá encontrar, e pode ser que não encontre nenhuma. O dogmático não procura senão provas para apoiar o dogma a que aderiu antes de encontrá-las.» Ora, «a submissão ao dogma é a base da fé católica» – mas não do cristianismo. Nada menos cristão do que a ortodoxia dos resignados, dos submissos, dos inconscientes. Como diz Victor Ouimette na longa e arguta introdução à edição de bolso espanhola, infelizmente ignorada pela tradução portuguesa, «A Agonia do Cristianismo é um guia para perplexos, um manual para uso de principiantes no caminho da reespiritualização da Europa, na sua libertação da tirania da ideologia, a letra morta».
«A sociedade mata a cristandade, que é uma coisa de solitários» – adverte Unamuno. Solitários que acreditam – ou querem acreditar – «na ressurreição da carne, à maneira judaica», mais do que «na imortalidade da alma, à maneira platónica». (…) «Porque nós, homens, vivemos juntos, mas cada um morre sozinho, e a morte é a suprema solidão.»
Lamennais, Kierkegaard, Renan, William James, J.-K. Huysmans, Amiel, enfim, Pascal, o inesgotável Pascal, talvez o mais trágico de todos os «agonizantes», foram grandes solitários, mesmo quando não se negaram a conviver com os seus contemporâneos. Pergunta Unamuno: «Pascal acreditava? Queria acreditar. E a vontade de acreditar, a “will to believe”, como disse William James, outro probabilista, é a única fé possível num homem que tem a inteligência das matemáticas, uma razão clara, e o sentido da objectividade.» (…) «Quando Pascal se ajoelhava para pedir ao Ser Supremo, pedia a submissão da sua própria razão. Submeteu-se? Quis submeter-se. E não encontrou o repouso senão com a morte e na morte, e hoje vive naqueles que como nós atingiram a sua alma nua com a nudez da sua alma.»
Os três temas fundamentais da obra de Unamuno – o do homem de carne e osso, o da imortalidade e o do Verbo – encontram-se bem presentes em «A Agonia do Cristianismo». Recusando-se a meditar sobre um homem abstracto, tão grato aos filósofos profissionais e aos imperativos racionalistas, assume-se como homem concreto e sedento de sobrevivência para além da morte – isto é, reivindica perante o Deus em que crê ou quer crer o direito – outros diriam a esperança – não apenas a uma pura imortalidade da alma, mas à ressurreição da carne tal como ela fora concebida pelo judaísmo dos fariseus e por Jesus. O Verbo – que no Novo Testamento indica por três vezes a pessoa de Cristo –, vai o filósofo procurá-lo, não nos textos escolásticos mais «aconselhados» pelas sábias hierarquias eclesiásticas, mas nas obras de grandes místicos como São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila e Santo Inácio de Loyola, ou de gigantescas figuras da literatura como Cervantes, Lope de Vega e Calderón de la Barca. Não surpreende, por isso, que ainda hoje muitos não perdoem a Don Miguel terem a congoxa do seu espírito e os gritos do seu coração evidenciado um tão soberano tédio perante a solene e sorumbática dignidade do pensamento considerado filosoficamente correcto nos mais respeitados e respeitosos «templos» de todo o mundo cartesiano, hegeliano e comtiano…
Miguel de Unamuno, «A Agonia do Cristianismo» (2.ª edição), Livros Cotovia, 2004, 140 páginas