António Rego Chaves
María Zambrano (1904-1991) nasceu em Vélez-Málaga e morreu em Madrid. Foi aprendiz de filósofa «entusiástica, ainda que algo herética», de Ortega y Gasset, bem como de Garcia Morente e Xavier Zubiri, que viria a substituir na qualidade de professora da Universidade Central da capital espanhola. Conheceu e tornou-se amiga de poetas como Luís Cernuda, Jorge Guillén e Miguel Hernández.
Republicana, abandonou o seu país em 1939, após a derrota na Guerra Civil, só regressando 45 anos depois. Durante o exílio, conviveu, entre outros, com Octávio Paz, Albert Camus e René Char. Os seus livros mais importantes são, talvez, «O Homem e o Divino», «Pessoa e Democracia», «Os Sonhos e o Tempo», «Clareiras do Bosque» e «Da Aurora». É hoje considerada, a par de Hannah Arendt e Simone Weil, como uma das mais notáveis pensadoras do século XX.
«Filosofia e Poesia» encontra-se já – aliás como outras das suas obras – traduzida para português pela mão atenta de José Bento, que trabalhou a partir da versão de 1971, integrando-a numa colectânea com o título «A Metáfora do Coração e Outros Escritos». A presente edição foi a última revista pela autora, em 1987, motivo pelo qual se julga justificado preferir e recomendar a sua leitura.
Escreve María Zambrano, «À Maneira de Prólogo», depois de nos referir as insólitas e nada pacíficas condições em que redigiu, no México, o seu ensaio: «Entendo por Utopia a beleza irrenunciável e ainda a espada do destino de um anjo que nos conduz para aquilo que sabemos impossível, como o autor destas linhas sempre soube que a Filosofia, essa, e não por ser mulher, nunca a poderia fazer. E a coincidência revela-se até nas palavras, pois na minha adolescência alguém me perguntou, às vezes com compaixão, às vezes com ironia um tanto cruel: “E porque vai estudar Filosofia?” Porque não posso deixar de fazê-lo, e neste livro escrevi, naquele precioso Outono de 1939, que utópico me parecia, e no mais alto grau, poder escrevê-lo. É que as Utopias, quando são de nascença, não se pode discuti-las, ainda que nos rebelemos contra elas.»
Ao abordar o pensamento de María Zambrano, forçoso será ter bem presente o seu conceito de «razão poética», largamente devedor do que Ortega chamou «razão vital», ao tentar superar, na rigorosa acepção hegeliana (suprimir e conservar) a antinomia racionalismo/vitalismo. A «razão poética» era para a filósofa um caminho de criação da pessoa e de realização individual, numa época em que a rigidez da «razão teórica» triunfante ocultava sem apelo académico as dimensões enigmáticas de vida. Daí, talvez, o seu fascínio por «suspeitos» filósofos como Plotino e Espinosa, por «estranhos» místicos como São João da Cruz e Miguel de Molinos, por «incómodos» exegetas como Mircea Eliade e René Guénon, todos eles insignes investigadores do misterioso «saber da alma».
Sintetiza Chantal Maillard: «Percorreu um caminho pessoal. Não se pode dizer que o inaugurou, mas sim que o quis converter em método e propô-lo como tal; quis descrevê-lo enquanto o percorria. Esse caminho é o da razão poética, a sua forma a metáfora, a sua possibilidade a disposição do espírito, a sua matéria-prima os símbolos.» E, mais adiante: «A poesia, pensa Zambrano, é resposta, a filosofia, em troca, é pergunta. A pergunta provém do caos, do vazio, até da desesperança, quando a resposta anterior, se ela existia, já não satisfaz. A resposta vem para ordenar o caos, torna o mundo transitável, mesmo amável, mais seguro.»
Repudiando o violento absolutismo dos pensamentos sistemáticos do século XIX, exigindo ouvir o coração para que se reconhecer, por inteiro, nas ideias e nas crenças e na acção, recusando ignorar a vida interior e profunda dos humanos, María Zambrano, aliás como Nietzsche, Kierkegaard e Unamuno, inscreve-se na história da cultura ocidental como um daqueles raros seres cujo desassossego intelectual exprime o que de mais perene e luminoso produziu a simbiose nem sempre pacífica entre as razões dos filósofos e os cânticos dos poetas. Como sublinhou Jesús Moreno Sanz, ela «espalhou o “logos” pelas entranhas» (Empédocles) e «deu um pouco mais de luz ao sangue» (Cervantes).
María Zambrano, Filosofia y Poesia, Fondo de Cultura Económica, 123 páginas