António Rego Chaves
Dizia Descartes que «o bom-senso é a coisa mais bem distribuída do mundo». Albert Einstein (1879-1955) demonstrou algo mais, a saber, que o mesmo indivíduo pode aplicar um mesmo genial bom-senso, quer a uma investigação científica, quer a uma reflexão sobre a educação e a cultura, quer a uma meditação sobre a religião, a guerra e o mundo. Eis o que fica bem patente nesta antologia de textos organizada a partir de alguns dos principais escritos do Nobel da Física de 1921: «The World as I see It», «Ideas and Opinions» (ambos editados em 1954) e «Out of My Later Years» (1956).
Não surpreenderá ninguém encontrar aqui páginas sobre a teoria da relatividade e a física teórica, bem como outras consagradas a Lorentz, Kepler, Maxwell, Max Planck ou Copérnico que, «mais do que nenhum outro, contribuiu para a libertação da mente escravizada pelas grilhetas do domínio clerical e científico no Ocidente». Inesperado será, para muitos, deparar com uma veemente condenação do darwinismo social por Einstein, ou saber que, em sua opinião, «sem cultura ética não há salvação para a Humanidade»; ou que, «a longo prazo, a destruição do mundo só pode ser evitada se for instituída uma federação nacional de nações»; ou, ainda, que «nada é mais necessário, para ultrapassar o snobismo modernista, do que a literatura clássica».
No que à religião se refere, o eminente cientista não podia ser mais claro: «Nas sagradas escrituras do povo judeu pode-se observar muito bem a evolução da religião-temor para a religião-moral, evolução que prosseguiu no Novo Testamento. Mas há também uma religiosidade cósmica», que já seria detectável nos salmos de David e em certos profetas, mas que é mais evidente no budismo. «Os génios religiosos de todos os tempos distinguiram-se por essa religiosidade cósmica que não reconhece dogmas nem nenhum deus formado à imagem e semelhança do homem. Não pode haver, portanto, nenhuma igreja cuja doutrina principal se fundamente na religiosidade cósmica. Assim, acontece que é precisamente entre os hereges de todos os tempos que se encontram homens cheios dessa religiosidade mais elevada, sendo considerados pelos seus contemporâneos muitas vezes como ateus, mas algumas vezes também como santos. Considerados nesse aspecto, encontram-se semelhanças entre Demócrito, Francisco de Assis e Espinosa.» (…) «A consciência da existência de tudo quanto para nós é impenetrável, de tudo quanto é manifestação da mais profunda razão e da mais deslumbrante beleza e que só é acessível à nossa razão nas suas formas mais primitivas, essa consciência, esse sentimento, constituem a verdadeira religiosidade. Nesse sentido, e em mais nenhum, pertenço à classe dos homens profundamente religiosos. Não posso conceber um Deus que recompense e castigue os objectos da sua criação, ou que tenha vontade própria, de puro arbítrio, do género da que nós sentimos dentro de nós. Nem tão-pouco consigo imaginar um indivíduo que sobreviva à morte natural. As almas fracas que alimentam tais pensamentos fazem-no por medo ou por egoísmo ridículo.» E, a rematar esta incursão no terreno de uma metafísica onde talvez já não haja mesmo metafísica nenhuma, o criador da teoria da relatividade parece a um tempo ir ao encontro e afastar-se sem retorno possível de Alberto Caeiro: «A mim basta-me o mistério da eternidade da vida, a consciência e o pressentimento da admirável elaboração do ser, assim como o humilde esforço para compreender uma partícula, por mais pequena que seja, da razão que se manifesta na natureza.»
Afirma Einstein que «a ciência sem a religião é coxa e a religião sem a ciência é cega», mas que, «se retirássemos ao judaísmo os seus profetas e ao cristianismo todos os acrescentos posteriores aos ensinamentos de Cristo, em especial os do clero, ficaríamos com uma doutrina capaz de curar todo o mal social da Humanidade», pois «os mais elevados princípios para os nossos juízos e aspirações são-nos dados pela tradição religiosa judaico-cristã». E manifesta a sua «profunda e dolorosa desilusão» porque, «enquanto a religião prescreve o amor fraterno nas relações entre grupos ou indivíduos, o princípio orientador é, em toda a parte, tanto na vida económica como na política, a luta implacável pelo êxito à custa do próximo. Este espírito competitivo prevalece mesmo nas escolas e, ao destruir todos os sentimentos de cooperação e fraternidade, concebe o triunfo não como derivado do amor ao trabalho sério e produtivo, mas como algo que nasce da ambição pessoal e do medo da rejeição.»
Ao advogar a formação de uma «Palestina indivisa, na qual árabes e judeus vivessem como iguais, livres e em paz»; ao denunciar a opressão das minorias étnicas, nomeadamente dos negros norte-americanos; ao combater as tendências militaristas e chauvinistas no ensino e na Imprensa; ao apontar o progresso técnico como causa de desemprego e de miséria nos países capitalistas; ao revoltar-se contra a exploração económica dos assalariados, «no seu mais lato sentido»; ao defender a democracia contra todas as ditaduras; ao estigmatizar os poderosos grupos industriais ocupados na produção de material de guerra, assumindo-se como pacifista, intransigente partidário do desarmamento e apoiante da objecção de consciência; ao condenar todos os egoísmos individuais, nacionais e classistas; ao advogar a formação de um governo mundial capaz de assegurar a paz limitando as soberanias nacionais e subordinando o Conselho de Segurança à Assembleia Geral da ONU, Einstein estava longe de se situar no terreno da utopia. Muito pelo contrário, manifestava um profundo conhecimento das realidades do seu tempo e dos meios capazes de contribuir para transformar este planeta onde viveu num lugar onde todos poderiam vir a gostar de habitar. Consciente como poucos da responsabilidade moral dos cientistas na produção de instrumentos militares de destruição em massa, lutou até ao fim para que eles não se deixassem escravizar por poderes belicistas, económicos ou estatais. Foi, sem sombra de dúvida, um génio do bom-senso, um generoso humanista e um exemplar cidadão do mundo.
Albert Einstein, «Como Vejo a Ciência, a Religião e o Mundo», «Relógio d’Água, 2005, 382 páginas