António Rego Chaves
Considera Maria José Pimenta Ferro Tavares que a morte de D. João II e o desejo de D. Manuel casar com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, «iriam transformar os judeus residentes em Portugal nos peões do xadrez político que era a unificação da Península Ibérica sob a égide de uma das coroas. O casamento ia ser o ‘xeque-mate’ à minoria de crença moisaica, pois a futura rainha punha como condição para o casamento a expulsão dos ‘hereges’ do reino». A cruel política integracionista de D. Manuel I – forçando os judeus adultos e seus filhos ao baptismo –, teve alguns efeitos imprevistos. Um deles foi a chacina de 1506, quando a fome e a peste fizeram crescer a onda de ódio contra os cristãos-novos, por muitos erigidos em bodes expiatórios de todas as suas desgraças.
É certo que já antes se haviam verificado tentativas de entradas brutais nas judiarias de Lisboa (em 1385, 1449 e 1482), mas o Mestre de Avis, D. Afonso V e D. João II lograram evitar o pior. O problema estava, porém, longe de ser resolvido. Como notou Newton de Macedo, «o que a população via no judeu era, acima de tudo, o inimigo da fé, o onzeneiro, o fiscal de impostos. Por isso lhe agradavam todas as medidas de violência contra eles usadas, como via com desagrado qualquer gesto de tolerância». A situação agrava-se em 1492, com a expulsão dos judeus de Espanha: cerca de cem mil fogem para Portugal que, na altura, não chegaria a ter milhão e meio de habitantes. Se, no século XIV, havia no nosso país 32 judiarias, elas seriam já 139 em finais do século XV. Afirmam os autores: «Com o crescimento das comunidades judaicas, e de conversos, muitas vezes mostrando grandes sinais de riqueza, terá crescido o ódio para com estes grupos. Por exemplo, em Beja, e seguindo o seu foral, era aplicada uma multa a quem ofendesse os conversos chamando-os de ‘tornadiços’, isto é, tornados cristãos.»
A questão tinha profundas raízes religiosas: «A ideia do afastamento, primeiro, e da perseguição, depois, terá base no facto de terem sido eles, os judeus, a matar Jesus. O deicídio passa, cada vez mais, a ser encarado como algo de irreversível, uma mácula indelével.» (…) «Como que susceptíveis de julgamento por este acto a qualquer momento, os judeus podiam ser geridos a bel-prazer, retirando-lhes bens e direitos, considerando-os sempre como um corpo estranho à sociedade que era, por natureza e definição, a cristã. Por exemplo, em 1404, os judeus eram obrigados a declarar, no São Martinho, todos os bens que possuíam, sob pena de confisco.» Acresce que, a partir de meados do século XVI, ser cristão deixará de ser factor decisivo para aceder a certos cargos: importará, sim, ter ou não ter uma ascendência ou um passado judaicos...
Salta à vista que as ideias dominantes entre os cristãos «velhos» eram susceptíveis de propiciar actos de violência contra a comunidade dos judeus. O que ocorreu a 19 de Abril de 1506 demonstra-o à saciedade: bastou que, na Igreja de São Domingos, alguém proclamasse que tinha ocorrido um «milagre» e que um cristão-novo tivesse posto em dúvida tal prodígio, ao que parece perguntando por que razão não faria o Céu o milagre da água, pondo termo à rigorosa seca vivida na altura, para que se desencadeasse a carnificina. O «herege» foi de imediato barbaramente espancado e esquartejado no meio do largo fronteiro à igreja. A seguir, um ou mais frades dominicanos terão pregado inflamados sermões contra os cristãos-novos, dando-se então início à matança. Outros clérigos foram acusados de incitar a populaça à chacina, por sustentarem que quem matasse a descendência de Israel teria a garantia de cem dias de absolvição no mundo que há-de vir. Milhares de pessoas saíram depois para as ruas «à caça» de cristãos-novos. Muitos destes seriam logo mortos, outros queimados vivos. Roubos, saques e violações não faltaram por parte dos fervorosos católicos apostados em punir tudo o que fosse judeu ou descendente de judeu. Os números variam, consoante as fontes: certo é que, durante três dias, entre mil e quatro mil inocentes foram vítimas dos fanáticos bandos de energúmenos que, doutrinados por dominicanos, lançaram o caos na capital.
Adiantam os autores que, trinta anos depois, uma vez montada a Inquisição em Portugal, «será exactamente pela mão da mesma ordem religiosa e, mais, no mesmo local, que a fase seguinte da perseguição será retomada quando forem novamente acesas as fogueiras da Inquisição junto ao Palácio dos Estaus, no Rossio». Mas D. Manuel actuara: mais de 50 pessoas foram executadas, entre as quais dois dominicanos instigadores da chacina que, uma vez destituídos dos seus direitos eclesiásticos, seriam entregues às autoridades civis e queimados na fogueira. Era a justiça exercida pelo monarca que, em 1515, pediria ao Papa o estabelecimento da Inquisição em Portugal – «privilégio» só em 1536 concedido ao seu sucessor, D. João III, que equiparará judaísmo, luteranismo, maometismo, proposições heréticas, bigamia e feitiçaria. Os autos-da-fé completariam o sinistro quadro da lusa intolerância durante o século XVI.
Com as conversões forçadas, D. Manuel procurara evitar uma funesta sangria de homens e de capitais, não expulsando, apesar das crescentes pressões diplomáticas dos Reis Católicos, a elite económica, cultural e científica judaica. Os acontecimentos de 1506 consagrariam o malogro da sua cínica política integracionista. Ver-se-á, assim, em 1507, forçado a permitir o êxodo dos cristãos-novos, com graves prejuízos para o País.
Ouçamos Manuel Viegas Guerreiro: «Judeus propriamente ditos só tornarão a Portugal dos meados do século XVIII em diante: e sobretudo depois das reformas de Pombal (1773, 1774), que acabam com a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, e da extinção do Tribunal do Santo Ofício (1821). São descendentes de ‘judeus de desterro de Portugal’ e outros, que nos vêm de toda a parte, e muitos de Marrocos e Gibraltar. Instalam-se no continente e nas ilhas adjacentes.» Foi de vez.
Susana Bastos Mateus e Paulo Mendes Pinto, «Lisboa, 19 de Abril de 1506 – O Massacre dos Judeus», Alëtheia, 2007, 161 páginas