António Rego Chaves
Salientou Oliveira Marques: «O regime pombalino teve o grande mérito de (involuntariamente) preparar o País para a revolução liberal do século XIX. Tanto a Igreja como a nobreza sofreram um golpe mortal de que nunca se conseguiriam recompor. Ao mesmo tempo, foi dada à burguesia (homens de negócios e burocratas) o poder de que necessitava para tomar conta da administração e do domínio económico do País. Ao nivelar todas as classes, leis e instituições ante o despotismo único do rei, Pombal preparou a revolução da igualdade social e o fim dos privilégios feudais; ao mesmo tempo que, reforçando a máquina repressiva estatal e rejeitando toda e qualquer interferência da Igreja, preparou a rebelião contra a opressão laica e, portanto, a revolução da liberdade.»
Apesar da «Viradeira» iniciada com D. Maria I e continuada na regência do futuro D. João VI, a burguesia, aliada à nova aristocracia, continuou a governar, para escândalo de muitos parasitas da velha nobreza. Neste contexto se inserem as «Memórias Políticas» (1803) do 3.º Marquês de Alorna, militar que comandou a Legião Portuguesa ao serviço de Napoleão e figura de proa do «partido francês» ou «aristocrático», protagonizando ambíguas relações diplomáticas com Londres, Paris e Madrid, ao mesmo tempo que procurava dar um novo alento às apetecidas mordomias de que tinham desfrutado entre nós tanto a nobreza como o clero.
Inimigo figadal das políticas externa e interna de Carvalho e Melo, «carrasco» de Alornas e Távoras, D. Pedro de Almeida Portugal sabe, logo no início do século XIX, que a monarquia absoluta se encontra ameaçada em toda a Europa, incluindo Portugal. Como salienta José Norton, autor da longa «apresentação» destas curtas «Memórias», «o aumento da importância dos secretários de Estado (correspondentes aos actuais ministros) em detrimento de outras instâncias administrativas e do Conselho de Estado, onde tinham assento os membros mais importantes da Grandeza», alarmava a velha nobreza do País. D. Maria I, ao subir ao trono, em 1777, «apenas» afastou o Marquês de Pombal. Todos os outros altos responsáveis se mantiveram no Poder, incluindo «o pérfido cardeal da Cunha, um Távora renegado». Mesmo onze anos depois, só o Marquês de Ponte de Lima representava a «grande nobreza» no Governo.
O começo da «Guerra das Laranjas», em Maio de 1801, com a invasão do Alentejo pelas forças espanholas em quatro pontos diferentes, veio pôr a nu o estado lamentável do nosso exército, «mal organizado e ainda pior dirigido», factos aliás já denunciados pelo Conde de Goltz, oficial prussiano contratado em 1800 para, sob as ordens do Duque de Lafões, comandar as tropas portuguesas. Estas, durante as hostilidades, «só não morriam de fome por bondade dos camponeses, pois não tinham mantimentos, nem armas, nem bestas, nem nada do que é preciso para fazer a guerra.»
Adverte o autor da «apresentação» referindo-se ao texto assinado pelo Marquês de Alorna: «Mais do que memórias, trata-se de uma memória política, um documento de reflexão e análise. É o retrato da crise do Antigo Regime visto pelos olhos de um aristocrata. É clara a defesa que faz do trono, do altar e da aliança do soberano com a nobreza.» (…) «E ainda que o seu tom geral seja pessimista, contém um conjunto de ideias acertadas em termos de teoria política e de administração pública que tanto valiam para a época como algumas até serviriam para os tempos presentes.» Sumário dos grandes temas aflorados: governo, secretários de Estado, erário, nação em geral, tributos, exército, tribunais, nobreza, clero, enobrecidos, força, espírito nacional.
Governo: «Recorrendo ao princípio de que o interesse do Príncipe é geral e idêntico com o dos seus Vassalos, e que o dos Ministros é particular, e frequentemente contrário ao deles: segue-se que o Despotismo Ministerial arruína e confunde as nações.» Secretários de Estado: «O interesse do Soberano e dos Vassalos consiste na conservação da Monarquia: os interesses Ministeriais consistem na alteração dela, com estabelecimento do seu despotismo: a Monarquia produz brio e contentamento: o despotismo produz escravidão, e tendência à liberdade.» Erário: «A Economia Pública consiste mais em despender com ordem do que em poupar e a ordem consegue-se com simplificações e não com ramificações e complicações engenhosas.» Nação em geral: «Quanto mais se paga menos se tem; e quando a Povoação tem pouco e vive miseravelmente, porque paga muito ao Governo, despreza o Governo.» Tributos: «O princípio mais sólido da Economia é a ordem, que consiste em igualar a Receita às Despesas úteis e claramente necessárias.» Exército: «Há muito tempo que o Governo contemporiza com Nações maiores: esta contemporização conserva-se até nos momentos de rompimento; e o Governo, fiando-se mais nos subterfúgios políticos do que na força militar, descuida-se dela na Paz e tira-lhe o impulso na Guerra.» Tribunais: «A grande afluência às Audiências do Soberano denota ou que a Nação se afasta dos canais estabelecidos ou que não se faz Justiça nos Tribunais.» Nobreza: «Há cinquenta anos [ou seja, desde os «malditos» tempos do Marquês de Pombal] que se trabalha em desautorizar esta Classe.» Clero: «A piedade dos séculos passados deu lugar a grandes concessões aos Eclesiásticos; e a impiedade que se declarou no século XVIII representou estas concessões como antieconómicas e ruinosas aos Estados.» Enobrecidos: «Se um corpo da Nação não pode passar sem tomar Criados Estrangeiros, não para as Artes, mas para o serviço ordinário, ou é a Nação mais Fidalga do Mundo ou a mais paralítica; e em todo o caso a que mais velozmente corre para o sistema de igualdade e que mais velozmente se afasta da Monarquia.» Força: «É certo que o patriotismo tem diminuído e que falta o Espírito Nacional.» Espírito Nacional: «As operações capitais são sustentar a Nação, manter-lhe a Justiça interior e defendê-la das perturbações interiores.»
Há espaço para sorrir: o tempo das mordomias das classes ociosas estava em vias de extinção – e nem um Proust poderia tê-lo reencontrado.
Marquês de Alorna, «Memórias Políticas», Tribuna, 2008, 140 páginas