António Rego Chaves
Grandes filósofos nos falaram da morte, sobretudo da que mais lhes iria tocar – a sua, ou da menos concreta – a de todos nós. Mas, verdade seja dita, ao contrário de inúmeros poetas e prosadores, cingiram-se com demasiada frequência a profundas investigações sobre a primeira premissa do mais célebre dos silogismos («Todos os homens são mortais») e acabaram por nos deixar sem nos esclarecer sobre muito do que não teríamos intuído senão graças ao auxílio da literatura. Analise-se o que nos resta de Kierkegaard ou Kant, Pascal ou Epicuro, Lucrécio ou Montaigne, Sartre ou Platão, Unamuno ou Heidegger: não certamente um mar de banalidades sobre a morte – muito pelo contrário –, mas uma persistente subestimação do desespero de ver desaparecer os que amámos. É certo que Séneca, Santo Agostinho, Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Paul-Louis Landsberg, Vladimir Jankélévitch ou Emmanuel Lévinas escaparam a essa tendência, ao tematizarem a «morte do Outro» – mas nunca ousaram erigir tal problema em objecto privilegiado das suas meditações filosóficas.
É do senso comum que nenhum ser humano nos pode transmitir, com conhecimento de causa, a experiência da sua própria morte – quando muito, dar-nos-á conta do seu medo, da sua indiferença, do seu desejo de morrer. Por isso se afirma que hoje só possuem uma «experiência da morte» – e mesmo que só têm o pleno direito de falar dela – os que choraram ou choram os seus mortos. E é esse choro que Teresa Balté, em «Sub Specie Aeternitatis», procura transformar em canto – um canto dilacerante, que oscila entre a prosaica e brutal expressão da vivência de uma dor sublime e o mais exigente, rigoroso e depurado dos textos poéticos. Pouco interessaria neste lugar apreciar a extensa obra literária da autora, ou a arte do escultor e pintor alemão Hein Semke (1899-1995), o homem que amou durante vinte e oito anos. Importa, sim, lançar um olhar de profunda humildade sobre este livro tão negro quanto luminoso onde se cruzam o Amor, a Morte, Deus e «Não-deus». E há que sublinhar o facto de as palavras que nele podemos encontrar alcançarem uma realidade a que talvez devamos permanecer sempre atentos em literatura – a autobiográfica, a realmente vivida por quem nos concede a dádiva da visão do que em si existe de mais autêntico e secreto.
«O poeta é um fingidor»? Não, não há sequer uma sombra de fingimento nestes «Fragmentos de Diário» que se iniciam com a agonia do Amado: «Apertas os lábios frágil espanto. Tu que acreditas na imortalidade, tu – que acreditas na luz e no amor, será que na batalha te interrogas, na agonia perguntas: Afinal? – Porquê, porquê? … nada me espera?» Depois, o espasmo de horror: «Um cadáver na terra, roído pelos vermes, és tu?». Uma centelha de esperança, logo triturada pela implacável lógica da razão insubmissa: «Reencontremo-nos na encruzilhada feliz, porque fomos felizes, no ponto de união dos destinos dos bem-aventurados, para além da morte, /Com todos os amados,/Ressuscitemos.» (…) «A dor já passou, ficou o nada que também dói e mata. Sei que não nos veremos nunca mais.» (…) «A minha morte não voltará a unir-nos, só acabará o sofrimento». E a crueldade dos derradeiros paradoxos, os que persistem depois de esgotado o tempo concedido aos humanos para amar: «Ah, eu procuro, mas raramente creio. Hesito, não aceito, não ultrapasso a morte (…) Perdi de novo Deus quando morreste. (…) Estarei sempre à espera que tu venhas. Ou que eu vá. Do encontro em que não creio. Porque nada coincide no nada.»
Acrescenta Teresa Balté: «Oh Deus, Não-deus – nunca mais estarei contigo, só nesta dor e desespero vivos. (…) Quando te pedi que ficasses comigo para sempre, disseste-me: A morte não é tudo./Quando me perguntei se serias mortal, comecei a matar-te./ Assim o nosso sofrimento foi pesado e longo.» (…) «Ah, afogar-me no sono – Mas também isso seria trair-nos, separar-me de ti, do sofrimento – único modo que me resta de guardar-te.» (…) «Não, lá em baixo não existe alma nem reencontro. O teu braço não é o seio da terra nem as flores azuis os teus olhos!»
Resignação, essa nunca se vislumbra: «A tua alma – tu acreditavas! Eu não acredito na alma, na energia, no anjo da guarda, não acredito em nada além da morte. Acreditava em ti.» Resta a amargura – e por vezes a ilusão, logo estilhaçada, da Ressurreição. Depois do longo e visceral grito de pânico, o «choro entoado» do afastamento, do escândalo da ausência do Outro, da solidão insuportável no luto. Trata-se de um duro suplício, esse a que a poeta se entrega para «mudar o choro em canto», com «Deus de novo morto.» A alquimista ousa conquistar o poder de se transformar na «dor anónima do mundo». Talvez por isso assuma com dolorosa mas firme lucidez a tragédia dos que só são capazes de crer na eternidade que os amantes constroem na Terra e encaram com melancólica indignação o insuperável sentimento da sua finitude, ou seja, a certeza da morte definitiva a que foram condenados: «Não sei acreditar mas agradeço. Agradeço o amor, mais do que a vida.»
Em boa verdade, a razão tudo ou quase tudo quer explicar e justificar, mas talvez não haja sensibilidade digna desse nome que seja capaz de aceitar a morte do ser amado: «E assim, porque perdia nela uma tão grande consolação, a minha alma estava ferida. E sentia dilacerada a vida, que se tornara numa só, formada pela minha e pela dela.» Este o desespero umbilical de (Santo) Agostinho após a morte de sua mãe, (Santa) Mónica. Mas Dostoievski chegaria mais longe, ao denunciar o sofrimento dos inocentes: «Não é Deus que não aceito, é o mundo que Ele criou, é esse mundo que não aceito, que não posso aceitar.» A lição a extrair tornou-se definitiva: basta uma única lágrima de criança para reduzir a zero todos os tratados de Teologia. A poeta Teresa Balté aprendeu na própria carne essa cruel lição e jamais a poderá esquecer.
Teresa Balté, «Sub Specie Aeternitatis – Fragmentos de Diário I», Edições ASA, 2004, 80 páginas