Uma ética para o milénio (Savater)

António Rego Chaves

Já tivemos oportunidade de apresentar nestas colunas o espanhol Fernando Savater, por ocasião da publicação da sua obra «Os Dez Mandamentos no Século XXI». Para lá de todo o respeito que nos merece alguém que, como ele, se bateu com valentia contra a ditadura franquista e contra o «fanatismo étnico» da ETA, razão pela qual seria galardoado em 2000 com o Prémio Sakharov dos Direitos Humanos, destacámos então as suas convicções anarquistas e libertárias, bem como a intransigente independência de que deu provas em relação a todos os partidos políticos representados no Congresso dos Deputados. Realçámos, também, o apurado sentido de humor deste incansável charlador e a sua capacidade de escrever numa linguagem clara sobre temas que em regra apenas interessam a especialistas de obscuras áreas filosóficas, contribuindo assim para levar ao conhecimento de um público muito amplo matérias que raramente ultrapassam redutos universitários para muitos inexpugnáveis. Na assumida concepção do filosofar como «reflexão sobre a vida» (englobando esta «o cinema, a literatura, a política, o amor, as drogas»), sempre praticada de forma muito acessível, reside sem dúvida o segredo da sua grande popularidade. Basta lembrar que já em 1994 a «Ética para um Jovem» vendera mais de dois milhões de exemplares em Espanha e Itália.

Fernando Savater diz considerar-se, no entanto, muito mais vocacionado para leitor do que para autor. Falando da sua intensa actividade de ensaísta, dramaturgo e polemista, confessou: «Considero-me mais um leitor do que um escritor. O que se passa é que para ler não me pagam, e para escrever sim; então tive de dedicar-me a escrever; mas do que gosto é de ler. Se me pagassem para ler seria muito mais rico e além disso ter-me-ia divertido muito mais na minha vida. Borges dizia que se orgulhava mais das páginas que tinha lido do que daquelas que tinha escrito; e se Borges dizia isso, com muito mais razão tenho de o dizer eu.»

Seja como for, esta «Ética para um Jovem», escrita pelo autor em intenção de seu filho Amador quando este era ainda um adolescente, não será supérflua para muitos quase-adultos que revelam, neste início de milénio, um perturbador desconhecimento e, até, uma arrogante indiferença pelos valores de que a filosofia ocidental se ocupa desde a Antiguidade Clássica. Se a reflexão moral constitui de facto «parte essencial de qualquer educação digna desse nome», então este livro deve ser dado a ler a um imenso número de futuros homens e mulheres, tanto mais que «o seu objectivo não é fabricar cidadãos bem pensantes (nem muito menos que não pensem), mas estimular o desenvolvimento de livres-pensadores». E é pela liberdade de responder com palavras e actos ao que nos acontece que tudo começa, pois podemos, pelo menos em boa parte, «inventar a nossa forma de vida». Como escreveu o poeta Octavio Paz, «a liberdade não é uma filosofia e nem sequer é uma ideia: é um movimento de consciência que nos leva, em certos momentos, a proferir dois monossílabos: Sim ou Não».

Sartre sustentava que estamos condenados a ser livres; Savater não diz outra coisa. Obedecendo ou não obedecendo a ordens, agindo ou não agindo de acordo com os costumes, seguindo ou não seguindo os nossos caprichos, sempre nos é exigido escolher, pensar pela nossa cabeça. E importará nunca esquecer que «a ética de um homem livre nada tem a ver com os castigos ou os prémios distribuídos por qualquer autoridade que seja – autoridade humana ou divina.» (…) «Talvez a uma criança pequena bastem o pau e a cenoura como guias de conduta, mas para alguém já mais crescidote torna-se muito triste continuar com essa mentalidade.»

Se há um conselho que o autor se atreva a dar ao filho (embora o incite sempre a pensar pela sua própria cabeça), é que jamais trate as pessoas como coisas – mas como pessoas. Que quererá isto dizer? Em empobrecedora síntese, que, ao definirmos as nossas relações com os outros, estafadas desculpas como estas: «eu cumpri ordens dos meus superiores»; «vi que toda gente fazia o mesmo»; «foi mais forte do que eu», pelas quais visamos apresentar-nos como «escravos das circunstâncias», a fim de alijar responsabilidades pelos actos que praticamos, nunca nos poderão fazer esquecer o dever absoluto – «imperativo categórico», diria o «velho»Kant – de tratarmos as pessoas como pessoas que são, isto é, de tentarmos pôr-nos no seu lugar, procurando compreendê-las a partir de dentro e adoptando, nem que seja por um momento, os seus pontos de vista. Explica o pai a Amador: «Porque há uma coisa a que qualquer homem tem direito frente aos outros homens, ainda que seja o pior de todos os homens: tem direito – direito humano – a que um outro tente pôr-se no lugar dele e compreenda o que ele faz e o que ele sente. Mesmo que seja para o condenar em nome de leis que toda a sociedade deve admitir. Numa palavra, pores-te no lugar do outro é tomá-lo a sério, considerá-lo tão plenamente real como tu próprio.»

Implicações políticas, para além da liberdade? Racionalidade da organização social, solidariedade. «A ética ocupa-se do que a própria pessoa faz com a sua liberdade, ao passo que a política tenta coordenar da maneira mais benéfica para o conjunto aquilo que muitos fazem com as suas liberdades.» A luta por relações mais humanas, isto é, menos violentas e mais justas, é responsabilidade de todos, por mais adversas que sejam as circunstâncias – sustenta Fernando Savater, que continua: «Todo o ser humano tem dignidade e não preço, ou seja, não pode ser substituído nem deve ser maltratado em vista do benefício de outro.» E conclui: «É a dignidade humana que nos torna a todos semelhantes, justamente porque certifica que cada um de nós é único, não intercambiável e detentor dos mesmos direitos a ser socialmente reconhecido do que qualquer outro.» (…) «Uma comunidade política desejável deve garantir, dentro do possível, a assistência comunitária aos que sofrem e a ajuda aos que, por qualquer razão, pouco ou nada podem ajudar-se a si próprios.» A bom entendedor…

Fernando Savater, «Ética para um Jovem», Dom Quixote, 2005, 158 páginas