António Rego Chaves
Duas grandes figuras da nossa cultura teriam dominado o discurso crítico português no século XX: António Sérgio na primeira metade, Eduardo Lourenço na segunda. Como que a dar crédito a esta tese de Carlos Leone, os nomes de ambos percorrem quase obsessivamente o segundo volume da obra, porventura em desfavor de outros não menos estimáveis, como Raul Proença, Bento de Jesus Caraça, Jaime Cortesão, António José Saraiva, Óscar Lopes, Padre Manuel Antunes, Joel Serrão, Vitorino Magalhães Godinho, Vasco Magalhães-Vilhena ou Boaventura Sousa Santos.
O ensaísta, já responsável por um breve mas incisivo livrinho intitulado «O Essencial sobre Estrangeirados no Século XX», perspectiva Portugal «como extemporâneo à sua própria história, um país automarginalizado da sua realidade europeia durante séculos e que, depois de tentativas desencontradas no século XIX, conseguiu ao longo do século XX formular um discurso crítico contínuo e cumulativo (apesar de tudo), capaz de gerar um público e um espaço público através da sua institucionalização na universidade e, assim, contribuir para a restituição do país ao seu espaço e tempo próprios, os da Europa moderna, e já contemporânea».
Considera o autor que, no segundo e terceiro quartéis do século XX, o discurso crítico se enraizou «em sede universitária e já não em jornais ou revistas», pelo que aparentemente se abstém de o procurar detectar na Imprensa dos referidos períodos, sobretudo após o termo da Segunda Guerra Mundial. Ora a crítica – e não nos referimos apenas à brilhante crítica literária assinada por um João Gaspar Simões, um Alexandre Pinheiro Torres, um David Mourão-Ferreira ou um Urbano Tavares Rodrigues, mas sobretudo à crítica política exercida por historiadores, sociólogos, economistas – nunca deixou de ser praticada em numerosos jornais ou revistas, mesmo na vigência da Censura. Vários vespertinos e matutinos («Diário de Lisboa», «República», «Jornal de Notícias»), semanários («Jornal do Fundão», «Notícias da Amadora», «Comércio do Funchal») e revistas («Seara Nova», «Vértice», «O Tempo e o Modo») não abdicaram de intervir, até ao 25 de Abril, no espaço público português. Olvidar este facto não constitui omissão de somenos – é erro indesculpável por parte de quem quer fazer justiça à universidade e aos universitários mas se recusa a fazê-la aos periódicos e a quem tanto e tão bem neles escreveu.
A circunscrição da crítica, no período indicado, às instâncias académicas torna-se tanto mais inaceitável quanto é próprio Carlos Leone que assim a define: «o discurso relativo à realidade social portuguesa que promoveu a europeização desta, não o seu isolamento (como o saudosismo) ou o seu afastamento (como o integralismo), nem sequer a sua relação directa, sem mediação nem sentido, sem viabilidade (como no nosso Modernismo).» Posta assim a questão, será que alguma Imprensa em nada contribuiu durante a ditadura para a nossa «europeização», quanto mais não fosse fazendo a apologia de valores democráticos ou expondo ideias e factos nacionais e estrangeiros que punham em xeque a ditadura salazarista?
A polémica sistematização da História de Portugal de António Sérgio em torno da díade Isolamento/Cultura permanece ainda hoje fecunda: «Do primeiro lado, Inquisição, Jesuítas, Pina Manique, ‘rigoristas’, ouriquistas e Castilho; do outro, Humanismo, Verney, pedreiros-livres, ‘franceses’, Herculano, Antero.» Esclarecia: «A minha tese é que o progresso moral de um povo está dependente do seu progresso económico.» Mas o pensador estava longe de ser um revolucionário: «A verdadeira luta social não é a de operários e patrões que os marxistas apregoam, mas a dos produtores e não produtores: a dos operários, patrões, cientistas e mesmo capitalistas de um lado, e do outro lado os parasitas de toda a espécie, entre os quais o da política é o mais nocivo, o mais infeccioso e o mais gargantuesco.»
Quanto às opções políticas de Eduardo Lourenço, elas tornar-se-iam públicas sobretudo a partir de 1974, nomeadamente em «O Fascismo nunca Existiu». Segundo afirma, o fascismo real formou-se pela gestão da não-participação política da maioria dos portugueses, que a herdou da sociedade dual que a I República não transformara. «Em todos os sentidos do termo, [o 25 de Abril] é um processo histórico e da história, o que quer também dizer que de certo modo sempre estará em julgamento adentro da história que seremos e fizermos. O autêntico processo do fascismo caseiro será constituído pela superação política, social, económica, educativa e cultural do estado de coisas que lhe constituiu o cerne. Se essa superação foi levada a cabo em termos pertinentes e duradoiros, poder-se-á dizer então que ‘o fascismo’ morreu. Enquanto isso não acontecer será apenas suspenso.»
À alternativa «ou revolução socialista, ou modernidade europeia», Eduardo Lourenço respondeu em 1978 pondo a hipótese de uma pessimista – ou só realista, quem o poderá hoje asseverar? – importação: «Éramos o elo fraco da Europa e uma brecha revolucionária pôde produzir-se, com efeitos limitados, numa das suas mais velhas nações. Mas o socialismo à europeia não virá ‘a contra-corrente’, como tem sido o caso por toda a parte até agora. Só pode vir da Europa, onde nasceram as suas teorias, onde tiveram lugar as suas lutas, de uma Europa que, de facto, é já quase socialista na sua realidade quotidiana… E se não vier dessa Europa, não virá de lado nenhum. A experiência portuguesa aí está para nos mostrar os limites do ‘socialismo do pobre’. Esperemos o veredicto do ‘socialismo do rico’, o único que pode dissolver positivamente o espectro de um capitalismo que, cem anos depois de Marx, continua a preocupar o mundo.» Fossilizámo-nos então à espera do «socialismo do rico», se é que ele medra na Europa?
Carlos Leone, «Portugal Extemporâneo – História das Ideias do Discurso Crítico Português no Século XX», Volume II, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, 509 páginas